Somos muitos, e muito diferentes. As individualidades nunca estiveram tão evidenciadas. Ao mesmo tempo, temos a possibilidade de nos conectarmos, formando grupos com afinidades, tramando movimentos, organizando "sociedades alternativas". Embora ainda se use o termo "moderno" como sinônimo de atual, a temporalidade que se vive hoje é considerada pós-modernidade. E o que significa ser pós-moderno? Para o sociólogo francês Michel Maffesoli, basicamente é a vida em sua interidade: o instante eterno.
Cientes, ou pelo menos desconfiados de que os recursos naturais se esgotam, e o projeto de vida estável calcado na fé, na família e na propriedade (paradigmas do homem moderno) já não se sustenta, as pessoas hoje se articulam em "neotribos" para experiências mais representativas de suas particularidades, inclusive, no turismo.
Fotos divulgação Instituto Hilda Hist
Ciência e literatura
Campinas, cidade localizada a 99 quilômetros da capital paulista, é considerada o terceiro polo em desenvolvimento científico do país. Com mais de 1,1 milhão de habitantes, tem intensa vida noturna e opções de compras e passeios em parques, como o majestoso Portugal. A novidade, no entanto, é a experiência que se desenvolve na Casa do Sol, lar da escritora Hilda Hilst, a homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty (RJ) deste ano, que se tornou um caso exemplar de preservação da memória de forma dinâmica. Sede do Instituto Hilda Hilst (IHH), oferece o programa Residência Criativa, oportunidade aos que dialogam com o legado da escritora de imergir no seu universo de forma muito íntima – e produtiva.
Entrando na casa
Era uma tarde de domingo quando cheguei à Casa do Sol, levando uma sacola de compras para minhas refeições nos próximos quatro dias. Demorei a reconhecer o portão, já que esperava o Sol que se vê nas antigas fotografias. Depois viria a saber que a entrada principal mudou de lado com as sucessivas vendas de lotes da propriedade – uma velha fazenda cafeeira: o símbolo ficou nos fundos, mais perto da majestosa figueira, outro emblema da casa.
Quem recebe os visitantes é Olga Bilenky, amiga de Hilda Hilst (1930-2004), que compartilha as vivências com a naturalidade de velhos amigos enquanto os hóspedes têm a oportunidade de utilizar a cozinha da casa, e os recantos para escrita e contemplação como se visitassem um parente próximo. E é essa a sensação que os leitores têm: com uma escrita transparente em seus afetos, Hilda se fez conhecer em sua vasta obra, onde constam poesia, teatro, crônica e romance, com títulos como Cantares de Perda e de Predileção (poesia), Rútilo Nada e A Obscena Senhora D (ficção).
A arquitetura
A casa foi construída por Hilda Hilst em 1965, em um sítio de propriedade da família. A intenção da escritora foi se distanciar da efervescência social. Inspirada pela leitura de Carta a el Greco, do escritor grego Nikos Kazantzakis, retirou-se aos 36 anos. A arquitetura foi pensada para a interiorização, com um átrio – todas as dependências estão voltadas para esse pátio central ensolarado, onde descansam sete ou oito cães (em vida, chegou a reunir mais de 60 cães de rua). No lugar das calhas tradicionais optou-se por correntes que conduzem a água, tornando os dias chuvosos especialmente belos.
A Casa do Sol foi frequentada por artistas da época, como os escritores Lygia Fagundes Telles e Caio Fernando Abreu, o editor José Luís Mora Fuentes e o maestro José Antônio de Almeida Prado. Dessas vivências, restam fotografias e algumas lendas, como a da Figueira Encantada. Olga conta que a árvore centenária presente no jardim realiza desejos.
Projetos e iniciativas
O projeto Casa do Sol Viva abarca diversas iniciativas. O Residência Criativa já recebeu mais de 150 residentes, entre poetas, escritores, acadêmicos, pesquisadores e tradutores. Outro destaque é o Teatro de Arena. Por meio de parcerias, são trazidos grupos para conhecer a casa e assistir a uma peça. Uma das produções é Osmo, representada pelo autor Donizeti Mazonas, nu, dentro de uma banheira na casa da escritora.
Os residentes pagam uma diária (cerca de R$ 100) ou são financiados por órgãos de fomento à cultura. Para seus trabalhos, dispõem da Sala de Memória Casa do Sol. O arquivo é composto por uma biblioteca com cerca de 3 mil livros, em que Hilda deixou anotações, fotografias, desenhos, plantas da casa e documentos dela e de personagens fundamentais para a história do lugar.
Transformar palavras e objetos em roteiros, seguir esses percursos... O rico universo das artes pode ser revisitado em formas contemporâneas de fruição. Já nos anos 1970, a arquiteta Lina Bo Bardi questionava a lógica dos museus, com suas redomas empoeiradas. A experiência vivida na Casa do Sol, estímulo à continuidade da criação em diálogo com o legado da escritora, segue o pensamento de Lina de que os museus devem possibilitar o protagonismo de suas comunidades. A proposta é de tal modo instigante que evoca um mapa de outras casas passíveis de uma exploração criativa, como a residência de infância de Clarice Lispector, no bairro da Boa Vista, em Recife (PE), praticamente em ruínas – e ainda aguardando tombamento.
Mais informações no site.
Por Alessandra Rech, jornalista, professora da UCS e escritora, pesquisa, com financiamento do CNPq, o programa Residência Criativa na Casa do Sol.
Fonte: Afrodite