Um dos termos mais pesquisados na internet no ano passado – e que não existe oficialmente na língua portuguesa – vem ganhando cada vez mais notoriedade para dar visibilidade às lutas femininas e derrubar de vez o mito da rivalidade cega entre as mulheres. Conheça e pratique essa ideia que tem tudo a ver com união, empatia e empoderamento.
Você pode não saber o significado exato do termo, mas quem sabe já se sentiu mais segura ou tranquila quando viu que era uma mulher que sentaria na poltrona ao lado em uma viagem noturna, ou experimentou uma sensação boa e de dever cumprido ao deixar claro que não achou graça de uma piadinha machista no trabalho. Tudo isso tem a ver com sororidade, expressão que tem despertado interesse e curiosidade não apenas enquanto conceito, mas principalmente como uma prática que todas podemos levar ao dia a dia a fim de derrubar velhos paradigmas.
Fomos atrás de respostas para uma das perguntas mais pesquisadas no Google em 2017: “O que é sororidade?”, e descobrimos que só temos a ganhar ao refletir sobre e procurar agir mais de acordo com a proposta. Mas, afinal, o que é sororidade?
Pode-se entender sororidade como união entre mulheres, explica a professora do Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG), Fernanda Sartor Meinero, mestre em Direito e Sociedade. “Seria uma espécie de pacto que equivale às relações estabelecidas entre familiares, ou seja, há uma proximidade afetiva e solidária.” De acordo com a psicóloga docente da FSG, Sandra Giacomini, representa a aliança entre mulheres, o equivalente à palavra fraternidade, descrita no dicionário como a ‘solidariedade de irmãos’ ou ‘harmonia entre os homens’.
“Na língua portuguesa, a palavra sororidade não existe oficialmente, mas vem ganhando cada vez mais força na busca por dar visibilidade às questões relacionadas ao feminino”, conta Sandra. Isso porque, tradicionalmente, palavras no masculino englobam homens e mulheres, reflexo de uma sociedade androcêntrica, ou seja, que reduz o que é ‘humano’ ao termo ‘homem’. Considerando que nada do que dizemos é neutro, e sim repleto de significados, entende-se que a linguagem transmite e reforça estereótipos de gênero. Assim, a inexistência da palavra sororidade no português tornaria invisível a amizade e a harmonia entre mulheres.
Desconstruindo crenças
No contexto do feminismo contemporâneo, sororidade passa a ser uma prática que implica em um poder, servindo de ferramenta para desconstruir a crença de que mulheres são naturalmente rivais, incapazes de ser verdadeiramente gentis umas com as outras. Para Fernanda, é uma luta contra a misoginia – antipatia ou aversão às mulheres, traduzida em falas e práticas por vezes reproduzidas automaticamente, sem nem nos darmos conta. “Às vezes essa luta é parte do reconhecer que mesmo nós mulheres temos práticas misóginas, formando uma consciência crítica”, observa.
Conforme a escritora Clara Averbuck, julgar a roupa, a vida sexual da outra, acreditar em estereótipos de gênero e preferir conviver com homens do que com mulheres, porque “é menos complicado”, são atitudes carregadas de machismo. E aqui vale lembrar o conceito/origem de palavras importantes: apesar de terem a mesma terminologia, machismo significa um sistema de opressão, enquanto feminismo a busca por equidade e libertação.
Sandra explica que o mito da rivalidade entre mulheres vem sendo construído ao logo do tempo associado principalmente à necessidade delas competirem umas com as outras como objeto da conquista masculina. Acabamos passando essa ideia de mãe para filha, culturalmente reforçando o estereótipo machista de que a amizade entre os homens é mais sincera. “Aprendemos que a relação entre mulheres é repleta de inveja e disputa na busca pelo olhar masculino e esquecemos de quem está ao nosso lado no momento em que mais precisamos. Com certeza a resposta é a mãe, a irmã, a amiga... Chegou o momento de valorizar o fato de termos umas às outras”, defende a professora.
A origem do termoSororidade é uma palavra que se origina no latim, sóror, que significa “irmãs’, assim como frater quer dizer ‘irmãos’. Nos Estados Unidos, sororities são organizações sociais em universidades: as fraternidades integradas por garotas. O termo sóror no português é encontrado como o feminino de frei, usado para designar freiras. No contexto atual, sororidade evoca um movimento político e ético de irmandade entre as mulheres. |
Há algum tempo já se flexibiliza a cor, o tipo de brinquedo e de brincadeiras oferecidas a meninos e meninas. Já não existem profissões exclusivamente masculinas ou femininas. Mulheres vêm ocupando importantes espaços de poder. O cuidado e responsabilidade com os filhos e filhas já não é mais um encargo unicamente feminino. Em um mundo em que a união entre mulheres já oportunizou a conquista de importantes espaços em casa, na família, na sociedade, nas organizações e no ambiente político, a proposta da sororidade aponta para a necessidade de mudança de estereótipos construídos entre as mulheres, e nos diz que podemos cuidar umas das outras.
Todas por uma
A internet está repleta de exemplos da disseminação dessas ideias e práticas. Quando o ator José Mayer foi acusado de assédio por uma figurinista da TV Globo e inicialmente negou o fato, não faltaram famosas e anônimas a usar a hashtag e camisetas com a frase #MexeuComUmaMexeuComTodas. O movimento Ni una menos gerou a reunião de várias mulheres no mundo solidárias à tragédia ocorrida com a argentina Lucía Pérez, que aos 16 anos foi dopada, violentada e morta na cidade de Mar del Plata. Na cerimônia do Oscar desse ano, atrizes e atores uniram-se em protesto exibindo broches do movimento Time’s Up, criado por Natalie Portman e Meryl Streep contra os crimes sexuais cometidos em Hollywood.
Com quase meio milhão de curtidas em sua página no Facebook, a jornalista Babi Souza, 26 anos, é criadora do movimento Vamos Juntas?, que teve como missão inicial espalhar a ideia da sororidade (traduzida por ela como irmandade feminina) para que mulheres se unissem na rua, inibindo violências como assédio e estupro. Autora do livro Vamos juntas? – O guia da sororidade para todas (Galera Record, 2015), ela já foi assunto inclusive em veículos internacionais, como o jornal inglês The Guardian.
Localmente, Caxias conta com a Marcha Mundial das Mulheres, que promove eventos e discussões sobre temas de gênero. Uma iniciativa nova na Serra é a Business Professional Women (BPW), associação de mulheres de negócios e profissionais reconhecida nacional e internacionalmente. A BPW Bento Gonçalves é presidida pela advogada e palestrante Beatriz Peruffo, que possui uma trajetória de mais de 30 anos de trabalho desenvolvido com e para mulheres, e é também fundadora da Rede Mulheres Mais Felizes, grupo fechado no Facebook voltado ao networking e ao fortalecimento feminino, com a participação de mais de 11,2 mil mulheres.
Beatriz destaca que, embora sororidade seja uma palavra nova para nós, seu sentido só tem crescido nos últimos anos. “Não estamos contra eles, muito pelo contrário. Acredito que uma sociedade será melhor no momento em que homens e mulheres trabalharem juntos e juntas. A concorrência não é mais entre mulheres, isso é da época em que só podíamos casar e, nesse tempo, só casávamos com homens. Hoje para ocupar espaços de poder nós disputamos com homens e mulheres. Temos que nos qualificar, sim, e nos unirmos muito mais. Só queremos igualdade de oportunidade e respeito pelas nossas diferenças”, defende.
Mudança de cultura, riscos e limitações
Até os novos clássicos infantis da Disney já denotam um importante impacto cultural, não deixando dúvidas de que o mundo mudou e oportunizando promover diferentes influências no modo de pensar e agir das gerações futuras. Diferentemente de clássicos tradicionais como Branca de Neve, Cinderela e Bela Adormecida, que trazem princesas a espera de um príncipe e uma constante rivalidade feminina representada por madrasta, irmãs malvadas e bruxas, as produções de princesas contemporâneas, em filmes como Valente e Frozen, fogem dessa representação, com heroínas femininas fortes e tramas que não giram em torno de conseguir um homem para ‘viver felizes para sempre’.
Embora esteja dentro de um movimento que parece ter vindo para ficar, ao produzir mudanças importantes socialmente, para Sandra, um risco de uma visão distorcida do uso do termo é a criação do mito da amizade plena entre mulheres, como se não existissem sentimentos de ódio e perversos entre elas, ou colocando as mulheres somente como seres do bem ou vítimas. “As polarizações, o lado bom e o lado mau, acabam por colocar uns contra os outros. O movimento da sororidade não propõe a substituição do mito da rivalidade feminina pelo amor incondicional a todas as mulheres, mas sim uma aliança entre mulheres baseada na empatia”, esclarece.
Fernanda explica que a limitação das teorias de gênero é a setorização, catalogar indivíduos, quando a intenção é justamente pregar a igualdade. “É uma questão bastante debatida, mas que no meu entender se faz necessária para que as pessoas questionem sua condição e seu agir.”
A sororidade na prática
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Por Vivian Kratz
Afrodite