Hábitos sumidos há décadas que voltam à cena, ou que permanecem sem sair de moda, atraem novos adeptos e, aliados à tecnologia, não só se mantêm, como se renovam. Trabalhos manuais, técnicas antigas e até alimentos esquecidos ou deixados de lado ressurgem valorizando o tempo, o bem-estar, a identidade e a natureza. Um resgate
do passado, do autêntico e original, sem nostalgia.
ESQUEÇA A CLÁSSICA imagem da vovó fazendo crochê. Quem olha para o jeito descolado e de menina da empresária Gisele Telve, 40 anos, proprietária de uma loja de vestuário há 17 anos, em Caxias do Sul, talvez não imagine que há 30 ela se dedica a trabalhos manuais como o bordado em ponto cruz e crochê. Com a sua marca, Gi Telve Handmade, ela cria bijus, bolsas e acessórios exclusivos, como as cordinhas de óculos que voltaram à cena e caíram no gosto das jovens nesse último verão.
COM UMA COLEÇÃO de 30 mil discos, Guilherme Mottin Possebon, 41 anos, bem que poderia ter migrado para as novas formas de escutar música e ouvir seus sons preferidos na comodidade do celular ou em mp3. Porém, ele prefere o que descreve como o som mais puro, sem digitalização, do vinil, os antigos “bolachões”, tidos por muitos como preciosidades, assim como os carros antigos, itens de colecionador.
RAQUEL DE MARCO, 35 anos, que já sofreu com problemas de saúde e precisou repensar sua alimentação, não abre mão de ter na mesa “comida de verdade”, priorizando alimentos direto da horta, sem corantes e conservantes. Tanto, que fez disso seu trabalho, entregando produtos agroecológicos fresquinhos, direto da fazenda, para quem compartilha da mesma preocupação, mas não tem tempo de conferir a forma como são cultivados os hortifrútis.
O QUE Gisele, Guilherme e Raquel têm em comum é o gosto por hábitos antigos que, pelo visto, estão voltando à vida das pessoas. Vintage, retrô, slow e confort food, slow fashion e ‘alimentação de verdade’ são algumas expressões já comuns ouvidas da mesa à moda, passando por hábitos não esquecidos, mas mantidos ou relembrados em muitos contextos, produtos e comportamentos.
E eles não estão sozinhos, do contrário, a indústria não estaria trazendo de volta ao mercado grandes sucessos de décadas atrás, como games e chocolates – já reparou que o Milkybar voltou a se chamar Lollo e que brinquedos clássicos dos anos 1980, como Genius, Detetive e o vídeo-game Atari, entre outros, estão de novo nas gôndolas? Em junho de 2017, a Sony anunciou que voltaria a fabricar LPs após quase 30 anos, alavancando feiras como as organizadas por Guilherme, que já somam 13 edições e reúnem um público apaixonado e fiel.
Tecidos à mão
A MODA é um dos cenários em que mais se percebe o vai e volta do tempo, com resgates de cores, formatos, modelagens... a cada temporada, sempre com novas roupagens e tecnologias aliadas. Interesses mercadológicos à parte, o que se vê é uma maior valorização do feito à mão e do exclusivo. “As pessoas sorriem com os olhos quando veem o trabalho pronto”, conta Márcia Fernandes Pomnitz, 55 anos, bacharel em Direito, professora de Língua Portuguesa e artesã de carteirinha que, com criatividade, confecciona bolsas únicas a partir de coloridos pontos de crochê.
“Aprendi sozinha, desde criança faço crochê. Como é um trabalho demorado, ponto a ponto, faço encomendas, entrego e sigo fazendo, bolsa por bolsa, como se fosse uma peça lapidada. Faço um pouco, olho, olho de novo, acrescento, retiro, vou criando e transformando num trabalho que eu realmente goste”, conta. A atividade a remete a bons momentos em família, ao tricô com as irmãs, bordando, “crochetanto”, cozinhando e conversando, muito, sobre tudo.
EM TEMPOS de muita troca de mensagem por aplicativos, as reuniões e encontros de verdade, face a face, muitas vezes ficam na saudade. Para a professora e especialista em moda Beth Venzon, em uma época de velocidade, o encontro com o fazer manual, com o tempo das mãos de tecer ponto por ponto, bordar, costurar, fazer tricô ou crochê, mescla histórias entrelaçadas em cada peça construída. “Não como forma de voltar no tempo, mas de valorizar o tempo, as pessoas, as histórias”, explica.
ATÉ PORQUE A TECNOLOGIA, conforme o uso que se dá, é aliada. A Gisele, do início dessa reportagem, que desde criança inventa coisas, descobriu na internet uma matéria-prima diferente para suas criações, o fio de malha, que é resultado de aproveitamento de sobras das malharias, ou seja, sustentabilidade pura. E anuncia pelo perfil no Instagram suas peças à venda. “Acredito que tudo está muito industrializado... China, trabalho escravo, então as pessoas estão querendo, cada dia mais, coisas mais naturais, dando valor ao que é exclusivo, ambientalmente correto, que sabem de onde vem.”
Os estilistas Carlos Bacchi, que assina vestidos artesanais e utiliza técnicas ecológicas de tingimento; Carolina Potrich, adepta do slow fashion, com proposta de roupas sob medidas em crochê e bordados manuais; e Rafaela Tomazzoni, com seu tricô atemporal, criando produtos originais e com identidade própria, são exemplos de profissionais que têm ganho notoriedade com seus trabalhos. Embora seja, conforme Beth, uma experiência de alto significado adquirir uma peça feita exclusivamente para você, o real valor do feito à mão ainda está longe do ideal e não é para todos. “Se for colocar o custo mesmo que seria, não vende. Faço mais porque gosto do que pelo retorno financeiro”, admite Gisele.
Comida de verdade
ASSIM COMO sustentabilidade e volta às origens, essência e naturalidade também são palavras ou expressões-chave quando se fala nesse fenômeno de resgate a hábitos do passado. Em meio a produtos adulterados e que colocam em risco a saúde e em xeque a confiança, ainda há quem prefira receber em casa o leite direto do produtor. À moda antiga, como acontecia na casa de nossos avós e bisavós, Marcelo Ferrari, proprietário da agroindústria Puro Sabor do Interior, em Farroupilha, há 19 anos entrega para cerca de 200 famílias leite fresco pasteurizado, sem aditivos químicos.
Além do leite, outros derivados podem ser recebidos em casa, com pedido mínimo de quatro litros, incluindo queijos, iogurte, nata, e sem cobrança de tele-entrega, por enquanto. “A maioria já tem os pedidos estipulados por semana, mas com o WhatsApp facilitou bastante”, conta, em meio a muito serviço. Na área da saúde, há a figura do médico de família ou comunitário, que, entre outras atividades, pode realizar visitas domiciliares, uma prática ainda muito restrita ao Sistema Único de Saúde (SUS). Alguns convênios, em iniciativas isoladas pelo país inspiradas em modelos europeus, estão buscando resgatar como forma de oferecer um serviço mais integral, humanizado e que aproxima médico e paciente, focando em prevenção de doenças e promoção de saúde.
NOVAS EMPRESAS também surgem com essa lógica. Alicerçado no desejo de fornecer alimentos saudáveis e com origem garantida, o Jardim Blauth é um serviço de entrega de produtos agroecológicos, que leva a feira a domicílio. Raquel de Marco estudou o mercado e passou a oferecer, desde 2016, uma colheita personalizada de legumes, verduras, frutas e temperos agroecológicos selecionados. O cliente pode fazer o pedido por e-mail ou WhatsApp, e as entregas acontecem em Bento Gonçalves, Farroupilha, Garibaldi e Carlos Barbosa. Caxias do Sul está nos planos.
“Trabalhamos com pequenos agricultores, todos com certificação de conformidade orgânica. Vamos até eles, sabemos como plantam. Temos a proposta de retomar algumas raízes do passado, especialmente essa ‘alimentação de verdade’, priorizando produtos plantados na horta, na pequena propriedade, e não em larga escala, com corante, conservante”, explica. Nessa mesma filosofia, crescem as hortas urbanas individuais e comunitárias, onde as próprias pessoas organizam-se com vizinhos e familiares, com ou sem apoio do poder público, para cultivar seus próprios alimentos.
O CHEF RODRIGO BELLORA é outro exemplo dessa valorização de um jeito mais natural de se viver. No seu restaurante, o Valle Rustico, em Garibaldi, até o preparo dos pratos respeita o tempo natural das coisas, não usando cozimento a vácuo, preferindo forno e fogão, panela de ferro, pão com fermentação natural. “Basicamente tudo que fazemos é como era antigamente, claro que temos equipamentos modernos, uma cozinha superbem equipada, mas gostamos de trabalhar com fogo, fumaça...”, o que proporciona uma experiência diferente e até afetiva nos clientes.
Com um trabalho de pesquisa de quase uma década, Rodrigo busca o que chama de ingredientes mais verdadeiros e saborosos, não necessariamente mais bonitos, o que muitas vezes vai na contramão da oferta. Ingredientes como milho crioulo e frutas nativas e pouco usadas na culinária, como butiá, gabiroba, vêm de produtores locais ou da própria propriedade. Nessa lógica, cada vez mais se ouve falar das Pancs, as plantas alimentícias não convencionais, antigamente consumidas, e esquecidas a partir da migração massiva do homem para a cidade, não utilizadas hoje por falta de costume ou conhecimento.
O que ficou do passado
O MOVIMENTO de resgate do que é autêntico e original não parece ter nada a ver com voltar nostalgicamente ao passado e negar a evolução, mas em atentar para não deixar morrer hábitos e costumes que fazem sentido hoje, trazem bem-estar e que, justamente por isso, não devem desaparecer. “Memória é o que sobrou do passado, é o que ainda existe e por isso está presente, vivo”, resume a pesquisadora Tânia Tonet.
O Garibaldi Vintage, um evento que aconteceu pela primeira vez no verão de 2014 e já chega a sua nona edição, atraindo cada vez mais adeptos, é a prova de passado e presente convivendo harmonicamente. Em meio a prédios históricos das décadas de 1920 a 1960, personagens de época, shows e carros antigos, entre 10 mil e 15 mil pessoas se encontram para celebrar, com boa gastronomia e espumantes, um tempo em que se vivia com mais tranquilidade, num outro ritmo, ficando na rua até tarde da noite com os amigos, sem muitas preocupações. Tudo, claro, devidamente registrado pelo celular e compartilhado nas redes sociais.
por Vivian Kratz. Fonte: Afrodite 46