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Afrodite Conversa Com Rejane Romani Rech | Revista Afrodite

Rejane Romani Rech

Foto Fabio Grison
Foto Fabio Grison

Patrona da Feira do Livro deste ano, a professora teve de deixar as salas de aula cedo, contra a vontade, por conta de uma doença crônica nas articulações. Mas o destino a fez retornar ao convívio de colegas e alunos por meio dos livros. Autora de seis publicações entre coletâneas de contos e crônicas premiados, um romance e uma novela, ela deu novo significado à vida através da escrita.

Ela não planejou começar a escrever, mas lá se vão seis livros lançados e, neste ano, comemora a homenagem como patrona da 34ª Feira do Livro de Caxias do Sul, que acontece de 29 de setembro a 14 de outubro. A caxiense Rejane Maria Romani Rech teve na descoberta da artrite reumatoide, doença crônica que a obrigou a se afastar das salas de aula aos 35 anos, um divisor de águas, mas que foi incapaz de separá-la das palavras escritas. Formada em Letras e respectivas literaturas, aos 61 anos comemora a coroação de um trabalho de duas décadas e meia com o patronato que a enche de orgulho. Seu mais recente trabalho Quase Autobiografia, motivado pela chegada aos 60 anos, foi lançado no ano passado.

As palavras escritas sempre fizeram parte da sua vida?
Rejane Romani Rech: Sim, é verdade, sempre. Mas até me tornar escritora demorou bastante. Meu sonho era ser dentista. Até hoje, para mim, o sorriso das pessoas é o que há de mais lindo. Mas eram anos de 1970, pais rigorosos, “imagina, uma menina estudar em Porto Alegre”. Odontologia não faz muito tempo que tem em Caxias, então não teve como. Pensei ‘o que vou fazer?’. Desde bem menina, com 11, 12 anos comecei a estudar inglês e adorava. Era até uma novidade para a época, tinha o Instituto Cultural Brasileiro Norte-Americano, que não existe mais, um excelente curso. Era aluna dedicadíssima (risos). Resolvi, então, estudar inglês na faculdade. Letras (habilitação Inglês e Português) foi maravilhoso, gostei muito, deu uma estrutura muito boa para a minha vida. Muitas pessoas não valorizam, por ser um curso com menos candidatos por vaga, carreira no magistério, mas fiz por amor, com dedicação, realmente. Tirei primeiro lugar no vestibular (risos), tenho até uma medalha do prefeito da época, Mário Ramos, foi uma felicidade para mim. 

Depois da faculdade seguiu carreira como professora?
Rejane: Com 20 anos comecei a lecionar, no colégio Madre Imilda, depois me formei, lecionei em Gramado, numa escola estadual. Aquela loucura que se faz quando é jovem, sai de Caxias e vai até Gramado, fiz isso ao longo de 15 anos. Mas aos 22 anos começou a artrite, e a coisa começou a complicar, tinha uma carga horária bastante pesada, já tinha a filha pequena (Caroline, hoje com 37 anos, médica nefrologista). Os médicos disseram que eu não poderia continuar... entrava em licença, o que é uma complicação para as escolas. Mas eu era jovem, nem imaginava parar. Foi uma bomba que caiu na minha vida. Aos 35 anos tive uma crise fortíssima, meu braço quase não movimentava mais e precisei me aposentar. Foi uma decisão difícil, não queria, sempre fui estudiosa, dedicada. E o que iria fazer da minha vida? Embora ser professora não seja algo tão simples, se arrumar de manhã, colocar o sapato de salto, conviver com pessoas, ter um status, ter uma profissão, enfim, é algo de que a gente precisa, né? De repente, precisei largar tudo, os médicos deram um ultimato. A essas alturas, além da Caroline tinha o Jônatas (29 anos, engenheiro de computação). A fase mais difícil com eles, meu marido e eu já tínhamos passado. Os médicos diziam que eu tinha que descobrir uma coisa interessante para fazer. Mas não tinha nem ideia...

Foi aí que surgiu a literatura?
Rejane:
A vida toda tinha estudado para ser professora, o que eu poderia fazer? Claro, me aposentei por invalidez, não gosto do termo, não me sinto uma inválida, mas é esse o termo usado, recebo o recurso até hoje. Passado o choque, precisava achar uma saída. Não sei como tive o insight e comecei a escrever. A aprender a escrever, na verdade. Porque nunca tinha escrito. Não era daquelas meninas que escrevem, nem quando adolescente, mais dotadas de sensibilidade, garatujam poemas... não, nunca fiz isso. Tinha tido uns correspondentes, mas eram cartas... no nosso tempo. Mas escrever o quê? A Caroline ia fazer 13 anos, entrar naquela fase da adolescência, da paixão, tudo aquilo, e resolvi ir por esse caminho...


Com os filhos, Caroline e Jônatas, e o marido, Juarez, em 2004 / Acervo pessoal

Foi assim, então, que surgiu o primeiro livro, Amor de Estudante (2004)?
Rejane:
Sim, é uma novela. Claro, a primeira versão não ficou muito boa, fizemos uma segunda, uma terceira. Levei 11 anos para publicar. Tive prêmios literários, comecei a participar de concursos, era maravilhoso cada vez que recebia um primeiro lugar. Pensava ‘meu Deus, mas o que tu estás querendo me dizer? Tenho que investir nessa área mesmo?’ Tudo era novidade. As pessoas, os jurados, me diziam que estava pronta para publicar, que meus textos eram muito bons. Em meio a tudo isso sempre fui uma grande leitora. Lia por prazer. No começo era Simmel, Sidney Sheldon, nada muito comprometido com a literatura. Quando comecei a lecionar para primeiros e terceiros anos do Ensino Médio senti que precisava de mais conhecimento. Aí me meti a ler literatura brasileira e gaúcha, de monte. Sou “Clariceana”. Clarice Lispector foi e é minha grande influência até hoje. Com 18 anos, na faculdade, li o primeiro livro dela, fiz trabalhos e me encantei, ela é extraordinária, diferente de tudo. Procurei ser uma professora verdadeira, queria que os alunos gostassem das aulas. Lecionei muito no noturno, quando o aluno chega cansado, então tem que ter um diferencial. Cantava em sala de aula, levava músicas para aprenderem inglês cantando. E, no início da minha trajetória na escrita, minhas leituras ajudaram muito também, porque tu tens que ter coragem para lançar um livro, tu estás te expondo ali.

E seu livro logo foi adotado por várias escolas, não é?
Rejane:
Sim, tive essa felicidade incrível. Dois meses depois do lançamento as escolas já estavam trabalhando, já adotaram, primeiro as particulares, depois as públicas. Hoje estou com dois livros esgotados, os dois primeiros, algo raro em Caxias. O segundo foi Antes que Seja Tarde (2006), uma coletânea de contos, com textos premiados. Aí você descobre o caminho das pedras (risos), e assim veio o terceiro... Sê Como o Sândalo (2008), publicado por meio de projeto inscrito no Fundo Pró Cultura, na época, agora Financiarte, em que fui selecionada, foi muito bom. Então surgiu o romance Mulheres e Destinos (2012). Há muitos anos desejava falar sobre os meus antepassados, foi um trabalho mais denso, chorei, sofri junto, foi muito bonita a realização dele. Depois teve o quinto, já na fase do Facebook. Eu era do Orkut, participava de comunidades sobre a Clarice, uma delas com 5 mil participantes de todo o Brasil. Diariamente trocávamos ‘figurinhas’ e aprendíamos muito, era algo bem cultural. Quando chegou o Facebook fiquei estarrecida com a banalidade e comecei a escrever pequenos textos, com literariedade, um pouco de figuras de linguagem, de manhã cedo, pois costumo acordar e ir para o computador, tenho uma vista bonita, vejo o sol nascendo... E as pessoas começaram a curtir, elogiar. Quando vi, já tinha um livro, Sutilezas e Outras Crônicas Diminutas (2015). 


No lançamento do primeiro livro, em 2004 / Via da Foto

E o mais recente, Quase Autobiografia (2017), é bastante especial, não é mesmo? Repleto de memórias?
Rejane:
Sim, ele nasceu de uma forma espetacular. Preciso dizer que lançar livro não dá dinheiro, você se incomoda pra caramba, porque sou muito perfeccionista. Tenho uma editora de Porto Alegre, a AGE, que é excelente, tem um bom editor, fazemos várias revisões, porque acredito que quando chega nas mãos do leitor tem que ser uma coisa boa, bem feita. Então a cada livro dizia ‘chega, estou cansada, não ganho nada com isso...’ Claro que ganhava, satisfação, mas nos últimos anos está muito difícil essa área cultural, temos poucos leitores, infelizmente. De repente estava prestes a fazer 60 anos, aquilo começou a me pesar, me pesar:  ‘então vou me tornar uma velha, e agora? Quais são minhas vantagens? Vão me chamar de idosa, vou poder estacionar com plaqueta, ter lugar preferencial em banco...’ Mas eu não queria ficar velha, toda mulher tem bastante vaidade e essa questão vinha me preocupando. Aí você faz as revisões médicas, o colesterol começa a subir um monte, pensa em fazer dieta... Quando vi, estava no apartamento da minha filha, em Porto Alegre, escrevendo. E outro livro estava surgindo sem eu nem imaginar, precisando ser escrito. Tudo aconteceu sem eu planejar demais... e agora sou a patrona da Feira do Livro!

Qual o significado para você desse papel de patrona, a terceira mulher consecutiva?
Rejane:
É a culminância de tantas coisas boas, é muito, muito bom. Em primeiro lugar senti que foi o reconhecimento de todo esse meu trabalho, são 25 anos de escrita, é bastante tempo, né? E Caxias, como estava falando, tem essa questão de não ter muitos leitores. A área cultural tem valorização, mas, digamos, por uma minoria. Então, para mim, é um significado imenso, porque é uma cidade grande, e ocupar esse lugar, receber essa homenagem, na cidade onde nasci e sempre morei... é a culminância do meu esforço, empenho, envolvimento, pois sempre participo das feiras, na medida do possível. Sempre que me convidam fiz questão de acompanhar, é algo que me faz bem. Meus amigos diziam há anos que eu era patronável, e eu dizia ‘imagina’, talvez no fundo quisesse, mas tinha um pouco de receio. Agora estou superfeliz!

E o que você descobriu ao chegar aos 60 anos, no processo de escrita do Quase Autobiografia?
Rejane:
É bem difícil falar sobre a gente. No fundo, o que tu és sempre vai estar nos teus livros, não tem como dissociar... preferências, o que tu almejas, sei lá, teus sonhos, tuas leituras, tudo vai refletir nos teus livros. Mas normalmente se coloca num personagem, ou em terceira pessoa... e dessa vez não. Estava tão bem comigo mesma que disse ‘vamos falar de mim’. E o que é ter quase 60 anos? É uma sensação muito boa. A sabedoria adquirida vale muito. A gente se preocupa com rugas, abdome que vai aparecendo, cabelo que tem que ser pintado a toda hora, mas, por dentro, vais analisando o mundo com olhos mais serenos, consegue compreender as pessoas, não exigir mais tanto delas, porque cada um dá aquilo que pode. A experiência vale muito.


Na seção de autógrafo do seu segundo livro, em 2006 / Foto Leandra Romani

O que você pode antecipar sobre sua participação na Feira do Livro?
Rejane:
Quero valorizar as mulheres escritoras de Caxias. São poucas, mas são boas. Temos gurias que escrevem muito bem e uma das coisas que solicitei para a coordenação é um sarau em que mulheres escritoras caxienses vão ler passagens das suas escritoras preferidas. Acho que vai ser muito bom, algo inédito. Porque a gente cresceu muito, conquistou muita coisa, mas é meio “entre aspas” pois os homens ainda dominam muitos setores. Temos que lutar para ocupar nosso espaço, então quero valorizar essas gurias, já as convidei, ficaram felizes da vida... O que mais gostaria de deixar como marca na Feira é o incentivo para que a população participasse mais. Os caxienses ainda acham que Feira do Livro é apenas as barracas de venda de livros com desconto. Não é. Temos muito mais, bate-papos, sessões de autógrafos, encontros com escritores convidados, oficinas. E é tudo gratuito, não se gasta nada. Tu podes ir lá ouvir uma sumidade do Norte, Nordeste, uma escritora atual, sem pagar nada, é simplesmente chegar e prestigiar. Fico muito triste que o caxiense ainda não saiba aproveitar isso.

O que falta mudar, para que isso aconteça?
Rejane:
Família, tudo começa ali, e depois na escola. Na experiência com meus filhos passei por isso, eles são leitores, passaram na UFRGS, tenho bastante orgulho de falar sobre isso também porque eles sempre tiveram esse incentivo, essa motivação, o pai e a mãe juntos, lendo juntos, acompanhando. É tão fácil e prazeroso colocar um filho no mundo, mas e depois? Tu tens que acompanhar. E a escola também. Escolas particulares proporcionam uma série de coisas, mas temos muitas e muitas crianças e jovens na escola pública, que está praticamente quebrada. Sou remanescente de uma escola estadual, conheço bem essa realidade, é muito complicado, a começar pelo salário péssimo dos professores, parcelado, ainda por cima. E é por isso que a Feira é bacana, porque proporciona várias atividades também gratuitas, Passaporte da Leitura, rodas de leitura, contação de estórias, a Feira congrega tudo isso. É uma oportunidade para os professores levarem seus alunos. Espero que seja uma Feira alegre, dinâmica, participativa.

Planos para o futuro?
Rejane:
Por enquanto estou me dedicando ao patronato. Tudo foi muito lento, nesses 25 anos são seis livros publicados, não tenho pressa. Penso que a qualidade é muito mais importante que a quantidade. Então nada de planos. Tenho trabalhado em alguns contos, mas descompromissadamente, sem pensar em publicação. Não adianta encher o mercado de livros se não temos leitores, então é muito mais inteligente, acredito, trabalhar na formação do leitor. Acho maravilhoso ir às escolas, embora tenha sentido nos últimos anos que essa coisinha (o celular) tem nos roubado os leitores, o que é uma pena. Acredito que precisamos de mais professores-leitores e existe também uma certa resistência financeira das famílias, por conta dessa crise. 


Por Vivian Kratz. Fonte Afrodite