por Vivian Kratz
Cláudia Dias Baptista de Souza, a paulistana que mudou o nome para Monja Coen Roshi a partir da vida religiosa, é dona de uma trajetória intensa, que inclui cinco casamentos, prisão e tentativa de suicídio. Adolescente rebelde, casou cedo, aos 14 anos. Foi mãe aos 17, já separada. Morou na Inglaterra, namorou um iluminador da banda de rock Alice Cooper (ela é prima de Arnaldo Baptista, dos Mutantes), ficou presa por cinco meses na Suécia por tráfico de LSD e trabalhou como jornalista profissional. Foi em Los Angeles (EUA) que iniciou as práticas regulares de zazen, algo como “sentar-se em meditação”. Os votos monásticos vieram em janeiro de 1983.
Desde então, graduou-se monja especial, habilitada a formar monges e leigos, permanecendo no Mosteiro Feminino de Nagoya, no Japão, por oito anos. De volta ao Brasil, assumiu inúmeros cargos de liderança, como o de presidente da Federação de Seitas Budistas do Brasil. Aos 72 anos, e autora de diversos livros, como Viva Zen (2004), O Sofrimento é Opcional (2018) e Aprenda a Viver o Agora (2019), é um fenômeno da internet, com mais de 1 milhão de seguidores nas redes sociais. Conhecida por abordar assuntos difíceis com leveza, simplicidade e direto ao ponto, esteve na Serra Gaúcha para uma série de palestras sobre ansiedade, felicidade e bem viver.
Ainda temos poucas mulheres líderes espirituais, como é ser monja budista no Brasil?
Para todas nós, monjas budistas, não é ainda muito fácil no mundo. A maioria das ordens budistas está sob liderança masculina, meus superiores são todos homens. Nossa ordem é uma das poucas em que há equidade entre homens e mulheres, então posso oficiar casamentos, enterros, cerimônias memoriais, ordenar monges e monjas, o que em algumas outras ordens religiosas, sejam budistas ou não, não é permitido às mulheres. A posição feminina nas religiões ainda não é de completa equidade. Nunca falo igualdade, porque não somos iguais, temos papéis diferentes a representar no mundo, mas equidade é o mesmo valor, e nós não temos completa equidade de gênero. O país mais próximo a chegar a isso é o Japão.
Um dos temas sobre o qual palestrou aqui na Serra Gaúcha foi a ansiedade. Estamos vivendo num mundo mais ansioso?
Parece que a gente está sempre adiante do que está acontecendo, no futuro, ou está antes, pensando no passado, e querendo provar muito a todos a nossa capacidade, responder a tantas provocações. Quando começamos o desenvolvimento da tecnologia, que nos traz tanta informação, tanta solicitação de presença, ficamos meio atolados, sem saber lidar direito com tudo isso. É um momento em que vamos ter de aprender a priorizar. Senão a gente afunda. Porque se quero saber tudo que está acontecendo, em todos os lugares, o tempo todo, se quero falar com todas as pessoas, mandar mensagens para todo mundo, me manifestar em todas as coisas que acontecem, no momento em que temos notícias imediatas do que está acontecendo aqui, em Tóquio e no Irã, é impossível. Nós vamos ter que selecionar. O lugar onde estou, e a maneira que posso atuar nessa sociedade é mais importante do que ficar mandando mensagens para o mundo inteiro, sendo que não tenho tempo para tudo isso. A nossa ansiedade vem de querer atender a todas as demandas, tanto as de trabalho, emprego, as exigências profissionais e da família, como também as dessa comunicação intensa.
Qual o papel da tecnologia nessa sensação de aceleração do tempo e das demandas?
A tecnologia não é boa nem má, é neutra, como uma taça de vinho, depende de você a quantidade que toma, o jeito que toma, no estado em que toma. Como tudo, é como nós usamos isso. A inteligência artificial veio para ficar, ela não vai embora. Nós vamos saber utilizá-la a nosso favor? Ou vamos ficar escravizados por ela? Tem pessoas que não largam do celular, crianças que ficam com certas deficiências psíquicas por estarem viciadinhas no aparelho. É estimulante, é gostoso, é divertido, mas tem que ser em doses certas, como o álcool, como o açúcar, como o sal, como tudo na vida. Enquanto não encontrarmos a medida adequada da utilização da tecnologia, pode se tornar um vício perigoso.
Mas a ansiedade não é algo ruim em si, ela tem sua função, certo?
Exato, precisamos conhecer, saber o que está acontecendo conosco. O autoconhecimento, a meditação é você perceber. Alguns de nós somos mais ansiosos, tem questões genéticas nessa história e também nossas experiências de vida. Não é se livrar da ansiedade, é conviver com ela. Vou perceber, ‘nossa, estou ficando ansiosa, que legal’ e não ‘que horror, não posso ficar assim’. É perceber, ‘olha, a ansiedade tá me pegando agora, como uso isso a meu favor?’. Não é se transformar em outra pessoa. O autoconhecimento me faz conhecer quem sou, me acolher e usar de forma adequada meu potencial. Sua santidade, o Dalai Lama, disse uma frase boa da última vez que esteve no Brasil: “Eu medito desde os seis anos de idade, a partir dos 16 comecei a entender o que era a meditação.” Ele estava com 76 naquela época, ou seja, mais de 60 anos que ele medita e sabem quanto ele se modificou? Um tantinho assim, pequenininho. Não é mudar, ser outra pessoa, é se reconhecer. Ao conhecer, posso usar de forma adequada. É como o uso de celular, do computador, se eu não sei como funciona, não vou poder usar. Na hora que aprendo a tecnologia, como funciona, posso usar melhor. É o mesmo conosco, a nossa mente, nossas emoções, sentimentos.
Você já passou pela experiência da depressão, certo?
Sim, quem já teve depressão uma vez consegue perceber os sintomas do início e pode tomar medidas antes de começar a deprimir. Quem nunca teve, não consegue... vai ficando triste, se trancando num quarto, não quer sair. Alguém fala “você está ficando com depressão”, e ela “não, não é nada, é só hoje”, e a pessoa não percebe. Na hora que se dá conta procura ajuda, porque tem certas coisas que precisamos de ajuda, de um bom amigo, de um terapeuta, de um remédio, às vezes de um salzinho, alguma coisa que faça a gente sair de um estado alterado de consciência. O que a meditação se propõe a fazer é que você fique no seu estado natural de consciência. Estado alterado é quando estou com raiva, com braveza, com excesso de tristeza. Tudo que é excesso está alterado. Porque, num estado normal de consciência, nosso sistema zera, há momentos que não temos pensamento algum, emoção alguma. Então, acontece algo e temos uma emoção, ela passa, tem uma alegria, passou, tem uma tristeza, passou, e a percepção que a meditação e o autoconhecimento trazem é de que não há nada fixo, nada que eu possa sentir, pensar ou está acontecendo é permanente. Isso nos dá libertação.
Qual foi e é o papel da meditação na sua vida?
A meditação é, para mim, uma ferramenta de autoconhecimento. A meditação que chamo de zazen, ‘sentar-se em zen’. Porque o zen se propõe a trabalhar com o fio terra da respiração consciente, é a presença do seu corpo e a consciência do ar que entra e sai. Aí tudo que pode estar acontecendo na sua cabeça você deixa passar e começa a observar: tem pensamento, não-pensamento, tem memórias, tem emoções, e tudo isso vem e vai. Respiramos o tempo todo sem nos darmos conta que estamos respirando. E as emoções são todas ligadas ao aparelho respiratório: raiva, rancor... a tristeza vai fechando... a raiva faz a respiração ficar alta, aqui em cima no peito. Por isso eu falo, conhecer-se é isso, ‘pô, alterou minha respiração’, vou baixar... porque eu tenho algum controle sobre a respiração. Sobre o que sinto, não tenho muito. O que sinto, sinto. O que faço a partir do que sinto é outra coisa, né?
Você tem uma história intensa, antes da vida monástica trabalhou como jornalista, viajou o mundo...
Minha mãe dizia “minha filha, quantas vidas em uma só vida”. Tive muitas experiências. Minha mãe era pedagoga, tive a benção de ter uma pessoa inteligente me orientando em casa e que me deu liberdade para fazer escolhas diferentes, não me cerceou, não me cortou as asinhas. Quer voar, voa, veja para onde está indo, ela me orientava, mas não me impediu. Imagina, eu tinha uma motocicleta, em São Paulo, naquela época, fui a segunda mulher em São Paulo a comprar uma moto. Chegava de madrugada em casa, trabalhava o dia todo, era algo diferente. Meu pai admirava mulheres inteligentes, intelectuais, ele não nos estimulou a nenhuma das chamadas ‘artes femininas’, de cozinhar, costurar... ele dizia “vá estudar”. Ele não teve um filho homem e queria que as filhas estivessem no mercado de trabalho em equidade. Minha mãe trabalhava no Ministério da Educação, meus avós também foram professores, então falar sobre educação e métodos de ensino era o café da manhã, o jantar, eram as conversas à mesa. Minha irmã se formou em Medicina e só tinham duas mulheres na escola dela, então acabamos sendo um pouco alavanca de transformação pela sociedade estar mudando e a família estar incentivando. Casei e tive uma filha muito cedo, esse marido foi embora quando eu estava grávida, coisa que acontece muito na sociedade e a gente fala pouco. Criei minha filha e um dia meu pai chega e diz: “o que tu vais fazer? Vais ficar em casa cuidando de filho? Vais trabalhar ou estudar?” Disse que ia trabalhar, mas sem saber fazer nada, descobri que precisava voltar a estudar. Entrei em Direito e vi que não era bem o que queria. Aí tive um convite para trabalhar no Jornal da Tarde, fui da última turma registrada sem ter feito a faculdade de Jornalismo, então foi aquele aprender na prática.
E a partir daí a escrita nunca mais saiu da sua vida?
Aprendi a ler muito cedo e com nove anos estava lendo tudo que encontrava, Machado de Assis, Eça de Queiroz, Monteiro Lobato, e eu gostava de escrever, minha mãe era poetiza, então a literatura estava muito entranhada em mim. Quando escrevi o primeiro texto para o jornal disseram “o que isso? Isso é um editorial, não queremos isso, aprenda a descrever a realidade”. E a escrita nunca mais saiu. Agradeço à turma do Jornal da Tarde a paciência comigo, de reescrever, reescrever e reescrever. Hoje a escrita para mim é um prazer, por isso é a última coisa que faço no dia. Primeiro faço todas as tarefas, porque vivo num templo, e o templo é como uma casa, tem que trocar lâmpada, passear com o cachorro, limpar. Acordo, faço uma meditação, tem sempre a prece matinal, depois o café da manhã, vou ao supermercado quando necessário, dou entrevistas, tenho um programa de rádio às segundas-feiras na rádio Vibe Mundial (95.7), e dou aulas. A semana inteira tem atividades no templo, quanto estou lá, participo, pois tenho sido chamada para dar muitas palestras para empresas, entidades. É muita atividade. E o escrever acaba sendo depois das 22h.
Você tem mais de 1 milhão de seguidores entre Facebook e Instagram, e procura falar sobre assuntos difíceis como depressão, ansiedade e a própria felicidade de forma leve e sem julgamentos, por que estamos precisando tanto falar sobre esses temas?
Nós humanos estamos carentes desse encontro com a essência do ser, o prazer da existência. Viver com alegria, contentamento. A gente está sempre correndo para fazer as coisas e não aprecia a vida. Dá para ir um pouquinho mais lento e apreciar a vida, é só isso. É como comer uma bolachinha, quando vê, já devoramos. Não é câmera lenta, isso não funciona, mas comer um pouquinho mais devagar, por exemplo, e saborear mais a vida. Saborear as emoções. Saborear até as ansiedades, até o que não é bom, o luto, a perda, a tristeza, a morte, não só morte de pessoas, mas às vezes de sonhos, de ideias, temos que conviver com isso.