Fotos Fabio Grison
Aos 56 anos, Jaqueline Maria de Oliveira Pauletti está em paz. A artista que transita por diferentes formas de arte gosta de silêncio e que as coisas andem lentamente ao seu redor, o que parece contraditório pela intensa produção no seu ateliê, em Caxias do Sul. Formada em Artes Plásticas e Licenciatura Plena em Educação Artística com especialização em Administração em Marketing pela UCS, Jaque nasceu em Três Passos (RS), noroeste do Rio Grande do Sul, na fronteira com a Argentina. Foi uma criança tranquila, meio melancólica... tudo o que sempre quis ser. Não brincou de bonecas, mas de ser livreira, desenhar na terra com gravetinho e montar coisas com caixinhas ou pedras. Mas, principalmente, gostava do mar, da praia e dos passeios com o pai e os irmãos “em incansáveis” aventuras pela natureza.
Filha dos professores Maria de Lurdes e Ruy Pauletti, um dos mais reconhecidos reitores da Universidade de Caxias do Sul, tem dois irmãos, Ruy Marcelo e Rafael Felipe. É casada com o empresário Alexandre Glacyr Dall’Onder, com quem tem “uma linda história de amor que rende um livro.”
Gosta de ser mãe, mas nunca foi do tipo “galinha choca”. A filha, Sofia, fruto de um relacionamento anterior, é produtora cultural e mora em São Paulo. Jaqueline já venceu o câncer, o que se mostrou um divisor de águas na sua vida, e revela ser uma péssima dona de casa. “Fui criada por pai e mãe feministas, que me formaram para o mundo fora da casa.” Aliás, nessa entrevista, ela faz várias outras confidências.
Como você se define?
Sou uma pessoa que está em paz. Nasci numa cidadezinha chamada Três Passos, na região do Alto Uruguai, é um lugar muito poético, cercado por imensas lavouras de trigo e soja, conforme a estação. Gosto de dizer que nasci numa ilha de terra vermelha cercada por um mar de sementes. Lugar de colonização alemã, o que acredito explica meu sotaque, no qual todos reparam. Não conheço minha vida sem a praia e, estar por longos períodos do ano à beira mar, quase me define. São meus momentos de viver pura e simplesmente, descalça e ociosamente. Uma coisa que não conto para ninguém e vou confidenciar aqui: dizem que sou engraçada e até divertida e isso me surpreende, pois sou péssima para piadas, raramente rio delas. Uma vez levei dois anos para entender uma piadinha e quando a ouvi pela enésima vez quase morri de rir. Sou assim, uma surpresa para mim mesma. Não tenho comida e nem bebida preferida, gosto de moda, mas não sou nada consumista; ao contrário, uso roupas que duram uma vida inteira. Adoro herdar roupas e acessórios, eles vêm com muita história e energia, e é humano, amoroso e ecológico. Se você me perguntar se quero água com gás ou sem, não vou saber responder, mas se quiser saber de poetas preferidos, já saltam Manoel de Barros, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa...
Como a arte entrou na sua vida?
Sou filha de intelectuais e vivi num ambiente de muita cultura. Imagina que o fio condutor de toda a nossa vida em família era o estudo, a formação intelectual, tudo entrelaçado com educação e a academia. Na nossa casa sempre circulava muita gente interessante... professores, escritores, artistas, poetas, filósofos, e o lugar preferido não era a cozinha, mas a biblioteca. Nesse ambiente, a gente ouvia as pessoas conversarem muito, trocarem ideias muitas vezes opostas, chegarem a consensos e se organizarem política e socialmente. Mas tudo sempre foi muito leve e simples. As artes estavam presentes, faziam parte do existir no mundo. Não sou apenas eu a criativa e ‘artística’, meus irmãos desenham, escrevem, tocam instrumentos e cantam (eu não tenho dom musical). Fui conduzida para as artes. Depois da escola ia para aula de alguma coisa criativa, tipo piano, dança, inglês... Porém, o que marcou mesmo foi o Atelier Livre da UCS, que frequentei por muito tempo, a partir dos meus oito ou nove anos. Ali, naquele universo fervilhante, fiz de tudo e conheci artistas maravilhosos. Pude respirar arte na integralidade. Fui incentivada a ser curiosa, a pesquisar e a pensar no que eu estava fazendo. Tudo era material expressivo e podia ser usado para contar uma história. Enfim, dentro e fora de casa, eu sempre tive apoio e incentivo.
E como você define esse período?
Fui uma sortuda, muito privilegiada em oportunidades. Trabalho desde os meus 15 anos, sempre disse que se eu tivesse que carregar pedras seria a melhor carregadora de pedras. Vim de uma família de classe média, meu pai era filho de um pequeno agricultor que virou operário, era pobre e chegou, pelo estudo, numa posição incrível de reconhecimento e respeito, e é a minha maior referência, meu ídolo. Não vejo saída para as coisas fora da educação e do trabalho. Desde que abandonei o salto alto e a agenda, levo uma vida meio deslocada do contexto geral, poética, numa velocidade particular. Amo estar em casa e vivo numa antiga casa que mantenho o máximo no original, entre objetos carregados de histórias, onde assisto muitos filmes e leio poesia em voz alta com a companhia do nosso cachorro, Filé.
Você transita por diferentes artes. Como isso acontece?
Não gosto quando me chamam de ‘multi’ alguma coisa. Não sou ‘multi’, sou ‘uni’. Trabalho, é fato, com várias plataformas, com linguagens diversas com inúmeros meios e materiais expressivos, mas é um processo muitíssimo integrado. Gosto mesmo de dizer que sou uma ‘comunicóloga’, por trabalhar com mensagens, contar histórias através dos meus trabalhos. Faço pinturas, colagens, ilustrações e crio objetos a partir disso. Digo que trabalho brincando como uma criança: elas levando a sério a brincadeira. Me divirto, vivo o melhor dos mundos. Poderíamos chamar de frases, mas penso que sejam discursos. Funciona como uma frase, com início e fim. Por vezes essa frase envolve muitas telas e bastante tempo decorrido. Trabalho nela até terminar de “falar” o que tenho a dizer. Sou especialista em planejamento; então, guardo um certo vício de fazer as coisas de forma menos intuitiva e mais racional. Às vezes, não é bom, mas faz com que eu consiga transitar pelas diferentes linguagens de forma muito leve. Reúno por coleções e projetos. Tem muita coisa que ainda não foi exposta, não “aconteceu” para o mercado – vou ter que viver mil vidas para realizar tudo! Tudo está no meu atelier. Nele, trabalho, exponho e comercializo.
Quando começou sua carreira profissional?
Gosto de acreditar que minha carreira iniciou aos 12 anos, quando um quadro meu (um nu em óleo sobre compensado, pintando com observação de um modelo nu, a Santa, que posava para o Atelier Livre) ganhou um prêmio no Salão do Jovem Artista do RS. Logo depois, fui bailarina e professora de dança. Mas, assim que me formei em Artes Plásticas, fui trabalhar na criação publicitária e construí uma carreira de bastante êxito. Imagina, eu tinha o perfil exato para um profissional ‘produtor de ideias’. Novamente confidenciando, fui indicada para a vaga por ser vista como ‘meio maluca’ (no bom sentido), isso me agrada lembrar sempre. Na verdade, estive o tempo todo nas artes visuais e na publicidade. Eduquei ainda mais a minha percepção de composição, de conceito e treinei estabelecer relações entre conteúdos. Isso me ajuda muito em tudo na vida, mas principalmente no meu trabalho atual.
E as produções que define como “arte para usar”, que incluem exposições de moda, como a Ninfas e a Flow?
Meu trabalho nasce de uma imersão bem profunda e emerge transfigurado em linguagens diferentes, conforme o que e como tenho vontade de contar. Gosto que meu trabalho seja ‘usado’. Aprendi com meu pai que conhecimento só tem valor quando compartilhado e isso é quase um mantra para mim. Então, meu trabalho tem que estar na rua, nas mãos e nas casas das pessoas para fazer sentido para mim. Fico em paz e feliz quando minha mensagem é recebida, e esse é meu objetivo. Sabe aquela coisa do emissor e receptor? É isso! Então, colocar meu trabalho em peças vestíveis é só dar continuidade ao trajeto das minhas ideias pelo mundo. A coleção Ninfas se compõe de obras abstratas sublimadas em chifon de seda, transformadas em caftans e lenços. A inspiração foi mesmo a natureza, cheiro de plantas e terra, e o calor do sol, as flores... Já a Flow foi inspirada em um jeito de ser que suplanta estereótipos, o viver de forma plena, sem arestas, amorosamente. Os abstratos que foram sublimados na Flow são pequenos e em papel, numa técnica extremamente expressiva que envolve colagem e pintura, e o tecido é muito macio, molengo, a minha cara.
Você ficou afastada da produção artística por uma época. Por quais áreas transitou nessa fase?
Transitei por tantas coisas e setores que nem consigo listar. Logo que me formei fui trabalhar em agência de propaganda e me apaixonei pela área. Foi isso que me levou para outras especialidades. Fui empresária na comunicação, na Executiva Comunicação Estratégica, que trabalhou todo o composto de comunicação de forma exemplar, por quase duas décadas. É uma sensação muito prazerosa saber que, na minha gestão, a empresa foi berço e escola para muitos profissionais incríveis. Um ciclo que encerrou, do qual guardo lembranças sensacionais e aprendizados. Fui professora da UCS por uma década, na área de marketing, nos cursos de Comunicação e Moda. Amei a experiência e dela tenho muita saudade, entretanto, penso que não teria mais a energia necessária para voltar a esse ofício. Sou muito exigente com isso, penso que o professor tem que ser o melhor dos profissionais. Imagina a pressão com o pai que foi um reitor conceituado nacional e internacionalmente.
Você conta que reencontrou uma ligação com as artes visuais após uma bem sucedida batalha contra um câncer, que define como um divisor de águas na sua vida.
Esta é uma questão que acabou dando um tom para minha vida que eu não imaginava, mas não tenho como me eximir disso. Sei, por experiência própria, que os exemplos bem sucedidos são um bálsamo para quem está lutando contra o câncer. Verdade, foi um divisor de águas. Aos 34 anos, eu já tinha retirado um melanoma e depois tive o diagnóstico de câncer de mama, sem relação de um com o outro. Fiz uma mastectomia radical e, aparentemente, o assunto todo encerrou em questão de dois anos. Mas, o câncer tem uma força avassaladora, abala o indivíduo e a família, além da saúde física, o contexto todo entra em perspectiva e você repensa seus atos. Não raro, e foi o que aconteceu comigo, a pessoa muda de vida. Não porque a vida anterior fosse ruim, mas, pelo menos no meu caso, por uma urgência em realizar outras coisas. Assim, deixei de ser empresária e professora, separei e casei novamente, e passei a me dedicar ao meu trabalho autoral como artista.
Como foi esse retorno às origens?
Tudo isso só foi possível pelo apoio vital do Alexandre, que casou comigo em remissão de câncer, ainda me refazendo fisicamente e ‘desempregada’. A arte e o amor me salvaram e me salvam. Nos últimos anos já tive ainda mais episódios de câncer, fiz mastectomia também da mama esquerda, histerectomia e agora, em abril deste ano, retirei um rim, pois detectamos nele um tumor maligno. Já estou muito bem e podemos considerar como mais uma grande vitória. Esse tom de superação não é despropositado, pois tenho me reerguido com muito sucesso constantemente. Meu trabalho com a arte não fala sobre esse tema; pelo contrário, a arte me salva, porque me afasta do assunto. Quando digo que a arte salva, me refiro ao poder que a liberdade de expressão tem sobre a mente e o corpo da gente. Recomecei há anos, num momento em que estava bem reflexiva e precisando usar o tempo em que estava me refazendo, de cirurgia e tratamento, não foi planejado. Depois (novamente confidenciando) passei um tempo chateando as pessoas, mostrando minhas pastas e querendo validação para aceitar que fazia algo de valor artístico. Só fui expor uns anos depois com o incentivo da maravilhosa Zoravia Bettiol, que me orientou por um tempo e me fez acreditar nas minhas ‘mensagens visuais’ e nos meus escritos. A Zoravia é extremamente rigorosa e exigiu tudo de mim. No tempo em que frequentei seu atelier-casa, em Porto Alegre, trabalhei muito e resgatei inúmeras habilidades que julgava esquecidas. Foi uma avalanche criativa. Minha primeira exposição se chamou O Grito das Formas e o Rastro das Coisas, e o título por si já conta um pouco de tudo.
Você tem três livros para crianças. Qual foi a inspiração e como é escrever para o público infantil?
A Zoravia é ilustradora, com ela descobri o prazer de tratar as imagens de forma a ampliar as possibilidades de um texto e, segundo ela, sou uma boa ilustradora. Ela me provocava e uma dessas provocações foi criar personagens. Criei os do Reino de Lá para a apresentar para ela (falei que ela é exigente e rigorosa), na viagem entre Caxias e Porto Alegre, e escrevi uma história. Daí para a edição do livro tudo foi acontecendo. Já Os Papeluchos Comedores de Cores contei para meu sobrinho numa tarde e resolvi ilustrar também, virou livro. Foi tudo muito natural, mas não simples. Pude comprovar que é muito difícil viver da escrita por aqui, ainda mais agora. Entretanto, embora meu trabalho comercial e de divulgação não seja o adequado, meus livros são utilizados em escolas e sou chamada para interagir com as crianças. Isso é uma novidade, com a qual eu não contava. Para mim não é muito fácil, por incrível que pareça, e este é mais um segredo que confidencio: sou tímida e o que me salva é minha espontaneidade e criatividade. Tenho muitas histórias até já ilustradas, mas o mercado editorial é muito complicado, então, não sei como será daqui para diante. Outro livro é o Fridinhas para Colorir, que já teve mais de uma edição e nasceu de um conjunto de ilustras que fiz nos intervalos dos outros projetos ou enquanto assistia alguma série. Estava inspirada por um livro sobre as receitas culinárias da Frida Khalo e fiquei muito tocada com uma faceta doce e maternal da artista. Editar foi sugestão do meu marido, que sempre leva a maior fé em mim, em tudo, é meu fã número 1.
Seu primeiro livro arte foi Fluxo (2017), depois veio o Reminiscências de Marias. Como foram essas criações?
O Fluxo é fruto de um trabalho de meditação ativa, fiz um desenho por dia, na mesma hora do dia, no mesmo lugar, com o mínimo de material. O projeto foi ‘premiado’ com o Financiarte e aconteceu. Sem falsa modéstia, ele é lindo, delicado, muito sutil. O Reminiscências de Marias (2019) é uma experiência nova, um livro artesanal, montado um a um, uma edição limitadíssima que nasceu do lindo encontro do texto da minha amiga Ieda Maria Vargas Lunardi e os meus desenhos abstratos. Nós duas somos Maria, assim como nossas mães (têm o mesmo nome) que nos inspiraram para a letra, Marias de Lurdes, daí o título.
Você trabalha no seu ateliê, o que mais podemos esperar?
Estamos vivendo um momento trágico com a pandemia. Nosso modo de viver e estar no mundo está sendo revisado profundamente o tempo todo. Retomei as atividades do atelier recentemente e ainda isolada ou em distanciamento. Penso que, agora, o importante seja repensarmos nossas atitudes, fazendo a nossa parte como indivíduos responsáveis e amorosos. Eu estava com o ano todo agendado com exposições, encontros, palestras e feiras autorais. Tudo ficou em pausa e estou revisando datas e formatos dos projetos. Teve também mais um susto com minha saúde. Então, estou recomeçando,de um jeito novo e as coisas estão lentamente acontecendo. Estou com a montagem de uma exposição no Sesc Caxias agora em setembro, e o convite foi a propósito da primavera, e as minhas Fridinhas vão estar lá em mostra física, mas o formato mesmo é o virtual. Ando envolvida com várias participações, acontecendo e agendadas, em lives de feiras de livro e em escolas na região. Tenho muito prazer em colaborar com isso, pois o trabalho que os professores estão realizando nesse período é heroico. Estou especialmente empolgada com o convite, já aceito, para expor em 2021 na Galeria da Casa da Cultura de Caxias. Essa exposição, na qual já estou trabalhando, provavelmente terá a curadoria da minha filha, o que confere à mostra um caráter muito especial. Também estou testando alguns produtinhos com umas ilustrações inéditas; por hora, são protótipos.
E os sonhos?
Meus sonhos são pacatos, normalmente, e de curtíssimo prazo. Realizo-os com uma certa facilidade. Ao mesmo tempo, seria óbvio eu falar que sonho com a vitória contra o coronavírus. Afinal, com isso todos sonhamos. Para pontuar um sonho específico, voltar a viajar com meu marido, fazer uma viagem com a família, seria algo muito prazeroso. Agora, sonho mesmo é ter uma vida cada vez mais simples, estar com a família na casa da praia, com nosso cachorro, Filé, um dálmata muito moleque, rabiscando meus sketbooks, escrevendo e observando a vida acontecer com calma, na varanda, ao lado da minha mãe.