Foto Fabio Grison
Selecionada para a Semana do Design de Milão, que acontece em junho, a obra O representa um ponto de partida e pode ser traduzida como a essência de Cristina Lisot, sua criadora. Artista com diferentes frentes de atuação, ela pensa e faz arte contemporânea nas suas diversas linguagens e desdobramentos estéticos enquanto coordena o setor de Serviços Especializados na Secretaria da Saúde dentro da sua área de formação, Farmácia Bioquímica.
Bailarina e professora de balé clássico, figurinista e artista têxtil, essa caxiense de 47 já trabalhou com a bailarina e coreógrafa Gislaine Sacchet e integrou o elenco da Cia. Municipal de Dança. Inquieta, paralelamente à faculdade fazia cadeiras das artes. Casada com o piloto de avião Giuliano Bianchi, é a filha do meio entre três irmãos, Rafael, o primogênito, e Carolina, a caçula. Com gratidão por sua infância, se emociona ao falar dos pais, Alzirse e Stela Lisot. “Acho importante dizer que amo a minha família. Meu pai e minha mãe foram e são superimportantes... e minha infância foi muito importante, recebi muito amor.”
Você é bailarina e professora de balé, artista têxtil, figurinista e bioquímica. Como tudo isso surgiu?
Sempre tive uma vivência muito forte com as artes, sejam diretas ou indiretas. Minha mãe fez Escola de Belas Artes aqui em Caxias, e quando eu era criança ela trabalhava no audiovisual das escolas. Fazia os cartazes, essa coisa do criativo, e quando eu saía do colégio, brincava nesse audiovisual. Ao mesmo tempo, meu pai teve uma indústria de calças de brim, e cresci no meio de muito tecido, costureiras, fios. Tinha essa raiz e, aos 16 anos, quando decidi a faculdade, lembro de ter muito claro a questão das artes. Mas tinha um conflito, porque eu não sabia qual área, não era plástica, não era balé clássico, era dança, mas ainda não havia dança contemporânea – quando tinha uns 13 anos briguei com o balé clássico, porque ele era muito formal, perfeccionista, não me encaixava naquilo. Então, paralelamente à faculdade, fazia cadeiras das artes. Por isso tenho um currículo estrito e um lato sensu, eu já sentia essa questão das artes, só que não tinha nenhum curso que queria daqueles já formatados. A decisão foi fazer Farmácia-bioquímica. Hoje entendi que gosto de estudar, e esses estudos se encontram. Por isso, fiz a faculdade e ia fazendo outras disciplinas para procurar essa coisa além do ‘tu vai ser uma bailarina ou vai ser uma artista plástica...’ e isso está se desenvolvendo em mim ainda, essa coisa de ser mais aberta, vamos usar essa palavra.
De que forma as áreas da saúde e artes se encontram?
Por exemplo, logo que me formei, fui trabalhar no Hemocentro.Lá, conheci crianças hemofílicas, é uma doença que faz sangrar nas articulações. Hoje em dia um pouco menos, mas quando nasce uma criança hemofílica, a mãe recebe uma advertência de que essa criança não pode se mover, se bater, não pode nada. Fizemos um projeto de ensinar essas crianças se moverem através da dança para que tenham autonomia. Conseguimos usar a arte para gerar saúde. Nas artes têxteis e na dança, agora, é o mote da minha pesquisa, porque tenho uma sensação de que elas nascem juntas dentro de mim. Não sei exatamente onde estão, mas estou indo de cima para baixo, vindo da dança contemporânea e do figurino eu já consegui aprofundar para uma coisa que é performance, arte têxtil, e isso ainda tem mais profundidade para encontrar exatamente o ponto de intersecção. Também é uma questão de aprofundar a matéria até perceber aonde elas se encontram, porque para mim tudo tem uma coisa de criar soluções, resolver problemas. Quanto mais ferramentas tivermos na mão, que pode vir de qualquer lado, elas vão se encontrando
Você brigou com o balé clássico aos 13 anos. Quando ele entrou na sua vida, ainda na infância?
Sim, há um tempo encontrei um boletim de 1979... Comecei na escola Margô Brusa, no Colégio Madre Imilda, devia ter uns quatro ou cinco anos, porque aos seis eu estava na primeira série. Depois disso dancei na Claudia Bergmann. E mais tarde voltei a fazer aula de balé, fiz as pazes. Sempre me apresentava no final do ano e é interessante até, ainda não me aprofundei, mas quando briguei, e isso pode ter vindo um pouco com a adolescência, vejo como um marco muito importante, porque diz alguma coisa também do meu tipo de movimento. Mas quando dancei Brasil, foi a vez que dancei com mais amor, porque aquela coreografia foi a primeira que não era clássica. A Claudia Bergman fez algo dos países e a gente abria como Brasil. Lembro até hoje da coreografia. Eu era até estranha para o balé. Ouvia coisas do tipo “e agora o é que a gente vai fazer contigo? Tu és muito alta e muito magra, tu não encaixa...” O clássico era clássico demais para mim, é isso.
E de onde vem tanta inspiração?
Tenho alguma coisa inquieta dentro, é quase como uma necessidade. Uma amiga minha disse – e isso de jovem – que às vezes a minha comunicação é visual, vou dizer alguma coisa e busco uma imagem. Então, acho que a inspiração vem daí, porque entendi que se eu colocar essa imagem, trouxer ela para fora, talvez me ajude. Vou usando das imagens para conseguir falar o que preciso. É muito interno e alguma coisa que não consigo conter muito. Por exemplo, a gente estava trabalhando numa coreografia há uns dois anos, era um grupo de bailarinos, antigos, tanto que chamava Milhões de Anos em 2018, numa alusão ao somatório das nossas idades. E aquela nossa coreografia não andou. Alguém comentou “a gente está fazendo a mesma coisa, não vai...” Então disse, vamos parar. Só que dentro de mim aquilo se move de um jeito que encontra outro caminho pra sair, não sei dizer bem o que é, mas não consigo parar.
Em dezembro sua obra O foi exposta na Fibra – I Bienal de Arte Têxtil, em Porto Alegre. Como foi essa experiência?
Essa obra decorreu exatamente do bloqueio da coreografia (Milhões de anos em 2018), porque pensei, tá bom não vai, então o que vou fazer, aonde vou... e acabei indo para a Duke University (EUA) fazer uma residência de 40 dias no American Dance Festival. Lá, eu caminhava para ir às aulas e sempre encontrava borrachinhas de cabelo no chão, que a gente sempre perde, né, mas nunca encontra. Lá encontrava várias... pensava ‘que estranho’, e olhando de cima é um ‘O’. Juntei, juntei e um dia falei pra uma amiga, ‘Como tem borrachinha pelo chão, tu encontras?’. Ela disse: “Não encontro nenhuma”. Daí veio assim... E já vinha um estudo de relação entre o corpo, o figurino, a pele como nossa primeira roupa ou que divide o interno do externo, que movimento consigo através do contato, da minha sensação. A gente fazia aula de artes plásticas e de movimento, e foi lá onde concebi essa estrutura, para que ela seja um objeto de dança na vida, e lá também que a inscrevi para a Bienal que estaria acontecendo aqui. Foi uma grata surpresa. Foi o primeiro e foi muito bom, mas quero ainda que essa obra tenha mais vida, porque ela foi como um objeto e, para mim, ela é a representação do meu corpo, ou do teu, ou de qualquer outro corpo, e precisa ainda ganhar mais armas, movimento.
Como você descreve a O e qual a sua essência?
Com inspiração nas borrachinhas de cabelo – cheguei a ver duas juntas, uma sobre a outra –, a O é um cilindro com paredes tricotadas, numa metáfora da pele da gente. Escolhi o tricô, ou artes de trama, porque entendo que o ser humano é poroso, tem relações de dentro e fora: como sou comigo, com o outro e como troco comigo e com o outro. É um objeto para eu poder entrar e sair, para a luz poder entrar e sair. Chama-se O porque é um zero ou pode ser um ponto, e a partir do zero ou de um ponto é onde podemos ir para o lado direito ou esquerdo. As faces de um cilindro também, se dividir muito, muito, são infinitas. Então tem a ver com as infinitas possibilidades, e ela é redonda exatamente porque não se é direcional, não vamos numa direção só. Qualquer ser humano pra mim é isso, pode se interessar por arte, por bioquímica, por movimento, por arte têxtil, por, por, por... Tenho que agradecer ao Centro de Cultura Dr. Ordovás porque a O é muito grande, eu não tinha como trabalhar em casa. Um dia, estava montando no Ordovás e vieram crianças perguntadno o que era, disse que era uma cabana... eles ficaram por ali e voltaram a peguntar. Eu disse, isso aqui sou eu. Como que é tu? Cada pano desses é um pedaço meu. Eu sou furiosa, qual é o pano da fúria? E eles acertaram. Espontaneamente, foi muito legal... quero seguir nessa coisa de estar junto. Eu gosto de gente.
Depois dessa exposição, você foi selecionada para expor na Semana do Design de Milão.
Vai ser em junho, em função do coronavírus (seria em abril), vou aproveitar o adiamento para pesquisar. Foi uma surpresa maravilhosa, porque eu estava passando por outras questões no meu trabalho como bioquímica e isso veio como um grande presente. Entendo que a vida vai dizendo pra onde a gente tem que ir. Foi um investimento de energia que estava colocando ali, naquele momento, e que frutificou bastante. Será exposta no Fuori Salone através de uma curadoria de um grupo holandês, o evento paralelo do Salone del Mobile di Milano, num lugar muito legal chamado Base Milano, seria uma Maesa, um prédio industrial com museu e áreas de exposição. A ideia é levar a obra, um vídeo mostrando o processo e, enquanto eu estiver lá, seguir pesquisando.
Hoje como você concilia o trabalho como bioquímica no serviço público, o ateliê e todos os outros projetos?
Voltei para uma função de bioquímica dentro da prefeitura, onde sou concursada. Trabalhei sempre como bioquímica dentro do Hemocentro e nos últimos dois anos fui enviada para outros setores. Agora estou coordenando os Serviços Especializados na Secretaria da Saúde. Tenho um horário que me permite dar aula de balé para iniciantes, fazer aula também e desenvolver esses outros projetos, como por exemplo um figurino que vou começar a trabalhar em Porto Alegre, no Theatro São Pedro, junto com a Carolina Garcia, uma diretora de lá. Vou precisar ir e voltar e vou conseguir me mover dentro dos meus horários. Por isso não posso ter cachorro (risos).
O que é o Jardim Jardim?
O Jardim Jardim é o meu ateliê virtual, é o que carrego comigo. O nome é porque sempre gostei muito da questão de flores. Em 2009, quando começou esse estudo de figurino, dança, movimento, resultou numa performance que tem a ver com a questão das flores e do significado delas também. Existe algo bem forte. Quando eu era bem pequena, talvez na época em que ia para o balé, sempre pegava florzinha, era daquele tipo de criança que tem de puxar e dizer chega. Ainda tenho esse hábito de juntar flores pequenas. Na intervenção urbana Mensagens Móbile Florescer vou para um terreno desocupado, coleto as flores que encontro ali e faço minibuquês com mensagens. Aí instalamos o móbile na área urbana para tirar a pessoa de onde ela está, porque é uma coisa grande. A pessoa se atrapalha com aquilo, me enxerga e recebe um buquê com uma mensagem, se ela quiser. Fiz na Bienal e em Caxias algumas vezes, e ele vai junto comigo, faz parte do Jardim Jardim.
Com tudo que você vive, qual a sua definição de arte?
Necessidade. Ela mantém a alma viva, de quem faz e de quem pode viver com ela. Porque pra mim é muito, muito, muito atrelada ao sentimento, ao sensível também, não só sentimento, mas o sensível do tato, da coisa de se estar vivo, ela nos ajuda a estar vivos.
O que você faz para se reenergizar?
Eu adoro dormir. Não pode contar para o meu marido, quando ele não está, eu durmo (risos). Gosto de fazer aula de dança, me faz muito bem. Gosto muito de estar com as minhas amigas, muito de estar com os meus sobrinhos, tenho três, os gêmeos Enzo e Georgia, que têm 14 anos, e uma menina de cinco anos, a Amora. E tem as plantas, minhas e do meu marido. A gente toma tempo pra ir na floricultura juntos, comprar mudas. Pra mim tudo é metafórico. O que a gente faz no concreto é igual no metafórico. Gosto de preparar o terreno, de plantar, de ver nascer. Isso pode ser em qualquer lugar. Aqui (sacada) está no concreto, mas isso pode ser lá como bioquímica, limpar, preparar, plantar, ver aquilo nascer e crescer... tenho muito prazer nesse movimento e isso está nas plantas, mas pode estar em qualquer lugar.
E os planos?
Quero seguir aprofundando essa área das artes. Pode ser que isso vire um doutorado, mas quero muito que seja consistente. Tenho uma aplicação no Textile Arts Center, em Nova York, para uma bolsa para pesquisa, é um horizonte, mas há os impeditivos, são nove meses, e acho que as relações são importantes de serem vividas. Meu marido e eu já temos pouco tempo juntos, porque ele viaja bastante. Então é um plano, mas existem outros, como seguir nessa pesquisa com o O e os parceiros daqui, como o Carlinhos Santos (jornalista), que foi convidado primeiro para me ajudar na dramaturgia, e a Sigrid Nora (bailarina), com a luz. A ideia é transformar a O naquilo que ela quiser ser. Isso porque daqui a pouco pode ser uma performance, um livro. É pesquisar exatamente tudo o que tem ali, o que poderá dar de suco, seguir dando aula e, talvez, aumentando esse grupo para uma coisa de pesquisa em dança. O plano é manter-me calma para que as coisas aconteçam.