Foto: Fabio Grison
Ela nasceu para cantar, mas só descobriu isso há 10 anos. Considerada uma das melhores intérpretes de jazz do estado, lidera a Bíbi Jazz Band, que já passou pelos principais palcos do gênero na capital gaúcha e encantou Caxias durante a Festa da Uva com o projeto Parla Piu Piano. Uruguaia fixada na cidade há três anos, tem uma voz poderosa, repleta de alma.
Nascida Bibiana Dulce Soca, há 37 anos, em Montevidéu, capital do Uruguai, Bíbi, como é conhecida, se descobriu cantora há 10 anos. Com formação em coro, inclusive canto lírico e participações em montagens de óperas em Florianópolis (SC) e São Paulo (SP), a dona de um timbre de voz especial e peculiar foi considerada por críticos da imprensa, no ano passado, a melhor cantora de jazz do Estado.
Participou de três festivais, o Jazz Porto, em Porto de Galinhas (PE); Floripa Wine And Jazz Festival, em Santa Catarina; e Villa Do Jazz, em Porto Alegre. Em Caxias do Sul desde final de 2015, a mãe de Ariana, 15 anos, formou com o guitarrista André Viegas a Bíbi Jazz, banda que traz no repertório canções de artistas consagrados do gênero com arranjos próprios, capaz de transportar à época de ouro do estilo musical estadunidense.
Você é uruguaia, como e quando resolveu vir para o Brasil?
Sou a mais nova de três irmãos, eles já tinham vindo e, aos 16 anos, resolvi vir também. Queria sair, ter minhas coisas, ser independente logo. Minha mãe é enfermeira, sempre trabalhando em hospital, ficava apavorada com tudo que via acontecer, não queria que eu viesse, queria que eu fizesse faculdade. Eu fugia de casa, desaparecia, dei bastante trabalho. Tinha vindo de férias para Florianópolis, a gente compra aquela visão de ‘país tropical’, viver perto da natureza. Na realidade não teve motivo para eu sair do Uruguai, foi uma irresponsabilidade adolescente. Minha mãe disse que eu tinha que conseguir pelo menos o dinheiro da passagem. Arrumei emprego em uma locadora de vídeo na esquina da minha casa e botei o dinheiro na mesa. Como era a palavra dela, vim. Hoje minha filha, aos 15 anos, foi morar na casa do pai, em Florianópolis, e vejo o quanto custou para minha mãe permitir que eu viesse. A Ariana está com o pai... eu não tinha nada, vim na cara e na coragem, sem nem saber falar português. Fiquei quase 19 anos em Floripa. Aos 22 tive minha filha, casei e não tinha muitas perspectivas do que fazer. Comecei a trabalhar com pesquisa de mercado, até que surgiu uma oportunidade na Folha de S. Paulo, comandando o departamento de pesquisa nas eleições municipais.
E o contato com a música, em que momento aconteceu?
Tinha vários amigos músicos, e o pai de um deles era músico profissional. Fazíamos luaus na praia, levávamos as crianças e eu sempre acompanhando. Um dia esse pai do meu amigo disse que eu era bem afinada e me sugeriu investir, ver se dava pra cantar de verdade. Me chamaram para trabalhar em São Paulo, entrava às 5h da manhã sem hora para sair... No meio disso meu namorado na época disse que tinha cantado no coro da Universidade de São Paulo (USP) e me levou fazer um teste, para pegar uma opinião profissional. Comecei a cantar depois de velha, faz 10 anos só. Nesse teste estava muito nervosa, a maestrina me mandou cantar e eu cantei Dos Gardenias, um bolero de 1945. Ela abriu a porta, olhou pra ele e disse “Adoro quando você traz pessoas ótimas aqui”, então, passei! Ela me colocou como contralto, na época, depois já passei para o naipe de sopranos e comecei a ter aula de técnica vocal. Cantei mais de seis meses no coro da USP, meio ano depois já estava recebendo do coro como profissional, foi basicamente uma formação de coro.
Foto: Marcos Monteiro
Como é ter começado a cantar mais tarde?
Mais tarde porque comecei a cantar profissionalmente mesmo, em palco, aos 27 anos, participei inclusive da montagem de Carmina Burana, no Teatro Municipal de São Paulo. O coro é legal do ponto de vista técnico, porque você aprende a cantar em naipe, fazer diferentes vozes, ter noções de leitura de partitura, até para meus alunos de voz hoje aconselho depois de fazer aula de canto, cantar em coro, ir exercitar. Mas eu não tinha ainda a questão da “casca”, que se diz no meio artístico, de cantar sozinha, ter um público na mão sozinha. A primeira oportunidade foi com show acústico, em barzinho. Recebi uma crítica uma vez de um profissional: ‘ser cantor de banda é muito fácil, porque são várias pessoas, agora, o acústico é tu e mais um’, é uma responsabilidade. Então comecei a fazer bastante acústico de rock, já de volta a Floripa. Entrei na Associação Coral Florianópolis, que é bem tradicional, teve montagens de óperas, fiz parte de coro lírico, aí já vem outro aprendizado, fiz meu primeiro solo como cantora lírica. Sou apaixonada, talvez se tivesse tido a oportunidade de começar mais cedo teria virado cantora lírica, porque amo música clássica. No lírico se canta árias em alemão, italiano, russo. Hoje dou aula no coro Aldo Locatelli, com a pianista Marli Zattera, maravilhosa.
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E o jazz, em que momento entra na sua vida?
Sempre escutei jazz. Antes de escutar Led Zeppelin estava escutando jazz. Foi algo que fiz sozinha porque na minha casa nunca se ouviu. Lá se escutava música popular uruguaia, candombe, blues, música clássica, que minha mãe ama – o gosto pela ópera vem da minha mãe –, mas o jazz não. Minha mãe odeia Frank Sinatra... eu amo ele. Antes de ouvir rock já escutava Chet Baker, já amava Billie Holiday. Além disso, o pai da Ariana tinha morado 10 anos em Nova York e tive um parto bem complicado, não podia nem me mexer, ele me colocou para escutar toda coleção de jazz e blues para ficar quieta (risos)... Agradeço muito ao pai da minha filha por ter me apresentado muita coisa, inclusive Nina Simone, uma das artistas que mais admiro. Já cantando, fui selecionada para alguns festivais, com vários artistas fortes.
Foto: Fabio Grison
E o surgimento da Bíbi Jazz, como foi?
Na chegada a Caxias foi difícil, comecei com apenas um aluno na escola Villa Lobos. Logo depois conheci o André Viegas (guitarrista) e o chamei para fazer uns acústicos simples, de rock. No primeiro ensaio falamos de jazz, dos festivais que participei e acabamos comentando sobre uma música que é um standard do jazz, Stella By Starlight. Eu disse que sabia cantar, passamos e saiu de primeira... ele disse: ‘vamos filmar isso’. O André estava num projeto com o pessoal dele e separou uma hora de estúdio, chamou o Gustavo Viegas (baixista), o maestro Gilberto Salvagni e gravamos Lover Come Back to Me, que é um swing, popularizado pela Billie Holiday. Aí começou a nascer o Bíbi Jazz Band e também minha carreira realmente como dona da minha própria voz e meu próprio trabalho. O André e eu somos sócios, dividimos as coisas, sou meio desbravadora, pego o mapa e vou, vendo os shows, negocio, coisa que não gosto – aliás, se tiver algum produtor querendo produzir a gente, agradeço.
O que cantar representa para você?
Meu negócio é subir no palco, cantar e arrancar o coração das pessoas, só isso que quero, o que é uma pretensão bem grande. Deixo tudo de mim ali, nasci para fazer isso. Me emociona porque não é algo que eu esperava, veio a varinha mágica da vida e disse ‘vai fazer isso’. Muitas vezes pensei em desistir, e uma vez um regente disse: ‘se você não tiver claro o que quer quando sobe no palco, melhor nem subir, porque as pessoas querem tudo de ti. Você tem que querer tudo das pessoas. Não é só uma questão técnica, elas querem que você diga alguma coisa e se não diz nada e demonstra só técnica não adianta, as pessoas saem como entraram, vazias’. Foi um teste que ele me fez, e respondi que queria arrancar o coração delas. Ele disse: ‘então, bem-vinda’. E já se foram aí 10 anos cantando, entre idas e voltas, parar e tentar parar de cantar, tentar ir fazer outra coisa da vida, porque isso é muito difícil... mas é mais difícil ainda saber cantar e ficar quieto, saber que você tem esse conhecimento e não fazer. Ou fazer outra coisa e ser infeliz de alguma forma. O que me interessa hoje é, quem sabe, poder colocar um trabalho autoral, minhas próprias opiniões, tenho essa coisa meio tragicômica e poder brincar com algumas coisas que me aconteceram é algo que me interessa. Mais que uma ‘cantante’ (cantora, em espanhol), me considero uma sobrevivente.
Foto: Roberta Amaral
Quais os projetos do momento e sonhos para o futuro?
Montamos no ano passado o All Of Jazz, um projeto que traz os standards de jazz com projeções antigas, fotos raras de cantoras, no palco. Estamos estudando trazê-lo para Caxias. Gosto muito de cinema, documentários, talvez façamos um vídeo, a banda quer investir em jazz autoral, em português. Tenho cantado em três línguas, inglês, espanhol e montamos o Parla Piu Piano, para a Festa da Uva, que foi hiperbem recebido, com o cancioneiro popular italiano transformado numa linguagem jazz. Não entendemos porque quase não tocamos em Caxias, em Porto Alegre passamos por todos os lugares de jazz, com apresentações lotadas e alguns palcos marcantes como a Biblioteca Pública do Estado. No barco Cisne Branco, que faz o passeio pelo Guaíba, todas as vezes lotou. Tenho a pretensão de cantar no Minton’s Playhouse, um pub tradicional no Harlem (Nova York), por onde passaram Billie Holiday e Sarah Vaughan, e poder realmente levar o jazz para frente. Jazz em português, ou espanhol, que as pessoas possam entender o que estou cantando. Para mim, o bom cantor é aquele que sabe transmitir o que ele está dizendo, porque senão só afina. E afinação é uma obrigação na música, agora, cantar e o público entender... é como um ator, ele precisa estar dentro daquilo. Se simplesmente cantar e estiver alheio, não toca as pessoas.