Presidente do Navi, essa artista plástica com trabalho mapeado nacionalmente pela relevância da produção é reconhecida por atuar pela valorização e fomento da arte e da cultura em Caxias. Mãe de três filhas e avó de quatro netos, tem uma ligação especial com o ensinar e o aprender. Acaba de inaugurar com a filha Jéssica o Instituto Samba, voltado ao sincretismo cultural.
Na Disney, em família, em julho de 1995 / acervo pessoal
Caxiense formada em Artes Plásticas pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) e presidente do Núcleo de Artes Visuais (Navi) há quase 20 anos, a porta de entrada de Mara De Carli dos Santos para o mundo das artes se deu através da dança. Indicada a importantes prêmios nacionais e com várias exposições individuais e coletivas no currículo, desenvolve trabalho com a técnica da xilogravura (gravura em madeira), além de coordenar importantes projetos para o fomento da cultura junto à entidade.
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Mara De Carli, como é reconhecida, começou a namorar o marido, o oftalmologista Jorge Olavo Nichele dos Santos, aos 16 anos, casou aos 20 e, aos 22, teve a primeira filha, Janaína, que é promotora de Justiça. Quando tinha 25, nasceu Priscilla, anestesista, e, aos 27, chegou a caçula, a arquiteta Jéssica De Carli. Avó de Vinícius, Giovana, Leonardo e Mariana, adora acarinhar os netos, sem que esse papel impeça as atividades artísticas ou as viagens com o marido.
Como começou sua ligação com a arte?
Mara De Carli: As artes visuais vieram depois. Comecei muito pequena, com quatro anos, a dançar balé, na antiga Escola de Belas Artes. Depois fui aluna da Dora Resende, uma das primeiras alunas dela, e quando terminei o Segundo Grau (Ensino Médio) fui fazer a faculdade de Artes Plásticas na UCS. Passei muitos anos dando aula, até que o Navi aparece na minha vida quase de paraquedas. Ao dirigir o núcleo passei a frequentar oficinas que ele oferecia e a ter orientação com um professor que vinha de Porto Alegre. Aí comecei, despretensiosamente, já que vinha das artes plásticas. O terreno ficou fértil e a convivência com as pessoas que já tinham uma trajetória foi bem legal. Continua sendo, não saí mais do Navi, estou na direção desde 1999. Foi aí que comecei a fazer uma produção.
Na Escola de Belas Artes, onde começou a dançar balé, aos quatro anos | Dançando em 1957, aos três anos / Fotos Geremia |
Tem uma história contada a partir dos livros Bar Treze: Lazer, Política e História, de Luiz Carlos Ponzi (2002) e Treze, organizado pela sua filha Jéssica (2017), de que você desenhou o símbolo do icônico Bar 13, que foi dos seus pais, Sady e Zóla.
Mara: Sim, essa é uma história bem legal, no livro da Jéssica tem o desenho original. Lembro que o pai chegou em casa e falou para a mãe da ideia de colocar um bar. Ele já vinha do Boliche Caxias, da Tabacaria Águia, sempre foi ligado ao comércio de bar. Minha avó deu a ideia “vamos chamar de 13” e meu pai disse “bom, se 13 dá azar para os outros, para nós vai dar sorte”, e realmente foi um marco na cidade. Como sempre gostei de desenhar, ele pegou uma folha de papel e disse: “desenha aí uma ferradura e um 13, que será o símbolo do bar.” Acabou que ficou. Eu tinha 13 anos quando isso aconteceu.
Você chegou a pensar em ser outra coisa profissionalmente?
Mara: Cheguei. Na realidade, se for bem franca, pensei sempre em fazer Arquitetura. As artes visuais vieram porque na cidade não tínhamos a faculdade de Arquitetura e, na época, meu pai não quis que eu fosse para Porto Alegre. Também já namorava meu marido, então, aquelas coisas de vida mesmo. Mas fiquei num curso semelhante e depois, sempre gostei muito de ser professora. Dei aula primeiro no colégio Rosário, em Porto Alegre, e depois no São José, por muitos anos também, no primeiro e segundo graus. Já vinha da época da Dora lidando com as crianças pequenas na dança, tive escola de balé em Flores da Cunha. O aluno para mim é alguém muito caro. Dizia para eles: “Confiem, porque se vocês se atirarem da janela eu vou estar lá embaixo esperando.” É uma relação que tenho com o ato de ser professor, mesmo que não seja mais, acho que, na alma, sempre serei. Passei um período na UCS também, dando alguns cursos de extensão.
E de que forma surgiram as primeiras obras? Como se deu o início do seu processo de criação?
Mara: Xilogravura comecei a fazer no Navi por conta da vinda de uma professora de Porto Alegre, a Anico Herskovits. Comecei também a fazer orientação com o Jailton Moreira, mais por ir buscá-los e levá-los na rodoviária, como presidente do núcleo. Até o dia em que realmente me apaixonei pela ‘xilo’. Hoje entendo que já gostava dela, porque nas primeiras viagens que fiz para o Nordeste sempre trouxe algo da xilogravura de cordel. Sempre me chamou a atenção e tive uma relação com o branco e preto diferente da cor. E aí aconteceu, fiz algumas exposições significativas. Na primeira trabalhei a paisagem ora inventada, ora imaginada, ora real, e a partir daí é que percebi que a própria madeira já tinha a paisagem posta. Comecei a lidar com abrir os pequenos veios com agulha na madeira, em determinados lugares no limite da minha intervenção, para que esse gesto, que é tão típico da xilogravura – o corte –, acabasse praticamente sumindo da vista de quem vê, não eu sumindo, porque na realidade eu interfiro. Elas aumentaram de tamanho e passaram a ser coisas bem maiores e, vamos dizer, até mais arquitetônicas. Dentro da gravura algumas criam certa volumetria, apesar de estar trabalhando com o plano. Enfim, é um trajeto, até que vou para o mínimo do mínimo, que são as matrizes muito pequenas, e o meu gesto fica, parece, cada vez mais transparente.
Quais as exposições, fases ou momentos nessa trajetória mais significativos para ti?
Mara: Uma exposição bem significativa foi com o Marcos Sari, artista de Porto Alegre, em 2011. Ali comecei a entender as minhas referências maiores, que são a Lygia Clark e Hélio Oiticica. Não nos conhecíamos, tínhamos o orientador em comum, e passamos a ver o trabalho do outro durante um ano e a crescer com isso. O Navi é algo extremamente importante para mim, na minha vida, porque conheci pessoas que serão sempre significativas pra mim. Criei coisas e acabei participando de algo, me parece, muito marcante não só para mim, mas para o coletivo, como permanecer na comissão da LIC (Lei municipal de Incentivo à Cultura) desde praticamente seu começo. Depois a implantação do Financiarte que, infelizmente, parece que está com dias contados. Já fui presidente do Conselho Municipal de Cultura no seu início e isso é uma grande conquista. Aliás, se tenho que me orgulhar de alguma coisa, é muito mais dessa participação em algo que resulte nesse coletivo cultural da cidade do que propriamente daquilo que eu faço. Porque o que faço em xilo tenho o poder de fazer ou não.
O casamento com Jorge Olavo Nichele dos Santos, aos 20 anos / acervo pessoal
Em Rainha do Mar com as filhas Priscilla, Janaína e Jéssica, no veraneio de 1983/84 / acervo pessoa
E vem aí o Instituto SAMbA...
Mara: Sim, nesse momento novamente ocorre algo muito importante na minha vida, a criação do Instituto Samba, da minha filha Jéssica. Meus pais sempre moraram na Rua Visconde de Pelotas com Hércules Galló, havia ali uma casa antiga da minha avó, onde me criei e depois deu lugar a uma casa modernista, com projeto do Paulo Bertussi e João Marchioro. Não cheguei a morar nela, porque casei antes, mas ali minhas filhas passaram infância e adolescência com os avós. Depois que meus pais faleceram, a casa ficou cinco anos desocupada e agora a Jéssica, que é arquiteta, resolve transformá-la no Instituto SAMbA, que vai olhar para a cultura popular. Ela me chama para estar junto dela, o que é importante para mim não só como mãe, mas como artista e alguém que se preocupa com o esmorecer da cultura da cidade, além do fato da casa estar quase chegando aos 50 anos e estar sendo preservada. Está aberta à visitação e neste início de dezembro vem um artista de Pernambuco bem importante, que une conceitos da xilogravura e da street art e está no mundo. O Derlon pintará um painel na rua, durante uma semana, e todos que quiserem poderão acompanhar.
E o que mais acontecerá no Instituto, exposições...?
Mara: Será um lugar de pensamento. Há um espaço de convivência gastronômica e também um olhar ecológico. Temos uma hortinha comunitária, de onde colhemos e colocamos os alimentos na parada de ônibus. Tenho um atelier numa chácara na Terceira Légua, onde também plantamos muitas coisas e não consumimos tudo. Parte meu marido doa, não vendemos, tudo distribuímos. Então coloco em saquinhos laranja, limão, enfim, o que se produz, e se põe na parada em frente ao Instituto. Cinco minutos depois, com o anúncio de que a nossa colheita só será importante se for compartilhada, as pessoas levam tudo, abanam, agradecem. Temos um projeto de adoção de uma ararinha azul, que é do Instituto Arara Azul de Campo Grande, no qual precisamos juntar um valor. Parte dos lucros da lojinha do Instituto será destinada a esse fim. Estamos trabalhando num projeto que irá unir o artesanato local com coisas da cultura brasileira, fazendo com que borre um pouco essa linha divisória entre o que é do Rio Grande do Sul e o resto do país, Norte, Nordeste. Estamos não nos apropriando, mas tentando estudar a cultura Iorubá, que gera uma cultura que nós aqui no Rio Grande perdemos algumas coisas, como a Folia de Reis. Acho que definiria o Instituto como um lugar de sincretismo cultural.
Esse trabalho voltado ao coletivo, à valorização da cultura, faz muito parte da tua trajetória, certo?
Mara: Sim, embora estejamos nesse momento de Financiarte não apoiado, que terá que se reestruturar não sei de que forma, há sim uma vontade, iniciativas em diferentes áreas, e não adianta não quererem, vamos seguir. O Navi nasce de uma vontade de permanecer. Era um atelier livre da prefeitura, a UCS na hora de encampar queria impor certas regras, os artistas se rebelaram e fundaram o núcleo, uma entidade independente. O artista tem isso. A Companhia Municipal de Dança se refez. O Navi é uma entidade sem fins lucrativos, não ligado a poder público ou privado, nos governamos, temos mais de 25 anos e com isso artistas de trajetórias já consolidadas. Às vezes surgem projetos coletivos muito intensos, mas que levam tempo para serem construídos. Exemplos são o projeto Terra, no qual buscamos terra de barranco para fazer pigmento, quebrando paradigma de autoria, e o projeto Arte Postal, em que foram 1,8 mil cartões postais iniciados no Navi para 1,8 mil pessoas que se inscreveram, interferiram e retornaram para nós, e isso virou uma exposição, que passou pelo Margs (Museu de Arte do Rio Grande do Sul), em Porto Alegre, e vários lugares. Temos algo muito importante no Navi, que são as Conversas Ilustradas, um curso teórico de História da Arte. Para mim é algo fundamental para se manter conectado não só consigo mesmo, porque o artista plástico é muito conectado consigo por trabalhar numa atividade solitária, e se você não se conectar com outros artistas e não tiver essa fundamentação, talvez possa não fazer uma autocrítica.
Obras da exposição O Avesso, Do Avesso, Do Avesso, Do Avesso
Você foi mapeada em 2005 pela produção artística brasileira relevante pelo Instituto Itaú Cultural e indicada aos Prêmio Açorianos (2012) e Prêmio PIPA (2017).
Mara: Sim, foram coisas importantes, momentos que fazem com que você entenda que o seu trabalho tem significado no olhar do outro, porque nenhum deles foi prêmio em que você se inscreve, alguém lhe viu. E o fato de alguém lhe ver para mim é importante. Comecei com a despretensão e continuo da mesma maneira, se as coisas acontecem fico feliz, se não acontecerem, ok, porque tudo é uma questão relativa. Você não é melhor ou pior porque recebeu uma indicação ou não, porque depende de um contexto, de quem lhe viu, de quanto você foi entendido ou não. Sigo trabalhando e vamos ver no que vai dar. Não tenho os processos muito rápidos, trabalho bastante, mas não tenho essa ânsia de mostrar. Preciso ter uma linha que conduza um trabalho e só depois, quando isso se fecha, é que me acho com vontade de expor. A última exposição que fiz foi bem importante para mim, se chamou O Avesso, Do Avesso, Do Avesso, Do Avesso, que é uma música do Caetano, realizada com a Vivi Pasqual. Se você olhar para o trabalho da Vivi e olhar para o meu, nunca vai dizer que a gente poderia estar juntas, no entanto nos unimos não pela afinidade, mas pela diferença. E ao trabalharmos nos olhando durante um ano inteiro, quando montamos a exposição, toda essa diferença se transformou em algo tão harmonioso que foi bem significativo tanto para mim quanto para ela, tenho certeza.
Por Vivian Kratz.