Fotos Fabio Grison
O sonho é fazer do mundo um lugar mais leve de se viver transformando a realidade através da arte. Atriz e produtora teatral junto ao Grupo Ueba Produtos Notáveis e gestora cultural no Moinho da Cascata, ao lado do companheiro de vida e sócio, Jonas Piccoli, Aline Fernanda Zilli assumiu em março a presidência do Conselho Municipal de Política Cultural de Caxias do Sul, que acabou se tornando um desafio ainda maior com a pandemia do novo coranavírus. Sonhadora e otimista inveterada, como se descreve, aos 35 anos conserva o olhar atento e curioso para o mundo, que vem desde a infância. Empreendedora de atuação versátil, segue engajada em movimentos sociais culturais por acreditar que a arte tem alcance para tornar o mundo um lugar bom de se viver. Formada em Publicidade e Propaganda, com extensão em Gestão Cultural, o teatro é sua realização, onde se expressa para o mundo e se nutre da energia da plateia.
Como o teatro surgiu na sua vida?
Desde pequena adorava encenar, imitar e fazer apresentações para a família. Quando pré-adolescente, comecei a procurar cursos na área, mas minha família não tinha condições de investir nas aulas. O sonho de estudar teatro foi adormecendo e ficou apenas nas atividades da escola e de grupos de amigos, e como hobby. A ideia veio com força mais tarde, e somente se concretizou na fase adulta e profissional.
E quando começou a carreira profissional?
Em 2002 iniciei minha carreira como publicitária, ano que marcava também minha entrada no curso de Comunicação Social. Comecei a ver que a comunicação, os eventos e as relações públicas eram muito presentes na minha vida, e cada vez mais me aproximava das artes. Por indicação de uma colega de faculdade comecei a trabalhar com o Jonas Piccoli numa empresa de comunicação em que os proprietários também atuavam com teatro em ações de empresas e visitação hospitalar. Desde então tudo fluiu muito naturalmente. Tornei-me sócia da empresa e, de publicitária, passei a focar em projetos culturais e estudar as artes cênicas em paralelo. De 2004 em diante o teatro entrou para ficar na minha vida e passou a ser minha profissão, junto com a gestão cultural do Grupo Ueba Produtos Notáveis.
A apresentação do Grupo Ueba diz que sua criação é uma história de trabalho e superação que merece ser contada. Conta pra nós?
Um belo dia estamos empenhados com dois pneus furados de um fusca/cenário em pleno (e remoto) sertão nordestino. Inusitado, né?! Assim é um pouco da vivência que o dia a dia da arte nos proporciona e demanda uma boa dose de superação. Para trabalhar profissionalmente com arte é preciso transpassar barreiras em um país onde a arte é pouco valorizada. Nesse sentido foi preciso, e ainda é, muito suor e inspiração para essa superação, abdicamos de rotinas e saímos da zona de conforto. Levamos a arte para todos os lugares e perfil de público e eventos como forma de manter o sustento do empreendimento nestes 15 anos. Buscamos transformar as dificuldades em oportunidades, com espetáculos criativos e inusitados, utilizando os espaços alternativos para a cena. Pensar na gestão cultural e na inovação sempre foram marcas que levaram o grupo à diferenciação e a alcançar o destaque e reconhecimento de sua trajetória em território nacional. E sobre o fusca no nordeste?! Essa é uma das boas histórias do grupo, que está detalhada no nosso site.
Quantos espetáculos já criaram? Por onde passaram? Quantas pessoas alcançaram?
Em 15 anos, o Grupo Ueba coleciona muitas histórias. São mais de 30 espetáculos profissionais de teatro realizados. A quilometragem percorrida, seja por terra ou pelo ar, daria certamente cerca de 50 voltas ao redor da Terra. Já levamos nossos espetáculos para mais de 350 cidades, em 14 estados brasileiros, viajando do Serrado ao Sertão, do Pantanal à Amazônia. As apresentações aconteceram também em solo internacional, como Itália, Uruguai, Venezuela e Chile. Certamente o público alcançado já passa da casa de meio milhão de pessoas, entre crianças e adultos.
O grupo tem uma atuação ampla, indo do público infantil ao adulto, comercial ao cômico. Como vocês trabalham essa versatilidade?
Atuamos para além das apresentações tidas como convencionais ao teatro, vai desde apresentações de cunho educativo em empresas e escolas, interações em eventos à visitação hospitalar, são as mais diversas vivências. Costumamos dizer que nosso lema é levar o teatro para todos os lugares, tendo o riso como agente de reflexão. Dentro dessa definição passamos a nos colocar no lugar do espectador, expandindo o olhar, e transitamos entre os seus diferentes mundos e realidades. É muito comum termos na plateia, especialmente no teatro de rua, doutores ao lado de analfabetos ou mesmo adultos e crianças assistindo lado a lado. Então pensamos que a linguagem deve ser simples, sem subestimar nenhum público, e a mensagem deve ser clara, intensa, e sensibilizar. Para isso fazemos muitas pesquisas, com um olhar atento e buscando as trocas de energias com o espectador.
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Como é o roteiro de criação de um novo espetáculo? E vocês tem artistas fixos? Como funciona?
Criar um novo espetáculo é um processo interessante, pois não há fórmula definida. Buscamos entender em qual contexto social ele será inserido, o que vai comunicar ao público, como as pessoas vão se identificar com a história e o que esperamos em termos de retorno dessa nova proposta. Muitos espetáculos surgem de inquietações nossas, diante de temas tocantes como injustiças sociais, outros surgem com a ideia de informar sobre determinado tema ou mesmo explorar a comicidade através de tipos caricatos do nosso dia a dia. Costumamos dizer que os espetáculos vão criando vida própria, desde a definição das equipes de atuação até os demais envolvidos na criação. O grupo conta com profissionais que já atuam juntos há bastante tempo, mas algumas vezes são realizadas seleções especiais. Na criação do espetáculo também levamos em conta questões econômicas relacionadas à manutenção do grupo e da sede, tornando o trabalho viável pelo viés de sustentabilidade financeira dos envolvidos.
O Ueba tem vários espetáculos que se dividem em teatro de rua, de palco e espaços alternativos. Quais você destacaria nessa trajetória?
Buscamos levar a arte para todo tipo de espaço por acreditar que nem todas as pessoas se sentem convidadas a frequentar salas de teatro tradicionais. Ainda é uma questão cultural que precisa de avanços no Brasil. O palco tradicional é um território de maior segurança para os artistas, pois ali está estabelecido o papel de ator e o do espectador e, em geral, tudo acontece dentro do ensaiado, com suporte de som e luz, com assentos para a plateia. São casos como o espetáculo Radicci e Genoveva. Quando falamos de teatro de rua é preciso entender que todo tipo de interferência pode acontecer, e é preciso lidar com cada situação de maneira única. Muitas vezes há interferências da plateia com os atores, bêbados fazem participações especiais, cachorros invadem a cena. É um espaço democrático de arte em que os papéis de atores e plateia estão em constante tensão, tornando cada experiência única. Destaco As Aventuras do Fusca à Vela, uma instalação urbana que leva para a rua um teatro tendo um carro como cenário. As apresentações em espaços alternativos podem acontecer da forma mais inusitada possível, desde um shopping, um hospital, uma indústria, por exemplo. Recentemente ocupamos os três andares da nossa sede com Vivita - A noiva do Sol, espetáculo de vivência diferenciada do público em contato com a obra.
O Grupo Ueba tem espetáculos que se transformaram em livros. Como é essa transição? É pensada já na criação ou acontece depois?
Tanto na cena quanto na literatura a pessoa é solicitada a ativar o imaginário para absorver a obra. O livro e o teatro fazem isso de maneiras diferentes, possibilitando experiências e sensações únicas. Quando estamos na fase de criação levamos isso em conta e cada um é pensado a sua maneira pelo Jonas, que é o escritor e dramaturgo. Em geral, começamos idealizando o espetáculo e depois pensamos em como fazer o teatro se transformar numa narrativa escrita. Para isso precisamos descrever algumas coisas que na cena são visuais e sensoriais, por exemplo. Os livros infantis contam com a ilustração para dar essa atmosfera, já os livros para os jovens e adultos utilizam do descritivo para dar material à imaginação do leitor para criar sua própria cena. O teatro evoca o efêmero, o transitório, e é uma arte absorvida através de uma vivência coletiva, enquanto o livro é uma plataforma mais intimista e solitária, porém, potencialmente muito intensa ao leitor. Plataformas diferentes oferecem experiências diferentes, as sensações mudam entre a página e o palco. Adoramos pensar nessa transversalidade.
Como foi a mudança para o Moinho da Cascata e como é fazer arte num espaço histórico na cidade?
Estávamos em busca de um espaço onde pudéssemos desenvolver nossa arte e aproximar nosso trabalho com Caxias do Sul. Assim nasceu o Centro Cultural Moinho da Cascata, através da parceria com a família Tondo. É um espaço que o grupo compreendeu ser possível transformar para realizar o encontro com a plateia em suas diversas possibilidades, além de entregar um lugar acolhedor para a cidade. A presença do grupo promove a preservação de um patrimônio cultural e faz a energia circular pelos diferentes ambientes, seja pelo teatro, gastronomia, literatura ou mesmo na preservação patrimonial e ambiental.
E como é fazer e viver da arte em Caxias do Sul?
É desafiador viver de arte na Serra Gaúcha. O caxiense é um povo bastante desconfiado e difícil de conquistar à primeira vista, mas também encontramos um público querido e que, quando se aproxima, cria um vínculo muito forte. Nossas atividades são sempre muito bem recebidas em Caxias do Sul. A cidade também oferece muitas oportunidades, especialmente no viés do empreendedorismo. É terreno fértil para inovar e aproximar as artes das iniciativas empresariais através dos mecanismos de incentivo à cultura, por exemplo.
E como é manter o negócio arte durante essa pandemia?
Há um grande impacto financeiro neste momento em que tudo precisou parar e mudar. Tem se falado muito em reinvenção, mas como fazer isso quando o teatro é realizado no encontro presencial? Nesse sentido acreditamos na transformação. Pensamos em alternativas como a migração de conteúdos para a internet sem perder a essência do grupo: a interação com a plateia, humor refinado e ritmo acelerado, além da linguagem simples e direta atrativa para crianças e adultos. Acredito que um artista conduz o público a imaginar e viver a partir de um mundo dado, um outro mundo possível. Estamos nos reinventando e oferecendo um novo mundo possível para o público, enquanto também buscamos viabilizar financeiramente a nossa atividade.
Em março você assumiu a presidência do Conselho Municipal de Políticas Culturais de Caxias. Quais os projetos?
Quando assumi este papel junto à sociedade caxiense o objetivo era aproximar as diversas esferas de trabalhadores da arte, atraindo visibilidade para a área, investimento e implementando políticas públicas para o setor cultural. No mês que assumi tivemos o decreto que instituiu a calamidade pela pandemia da Covid-19. Manter a atividade cultural viva é sempre um desafio, em tempo de distanciamento social, virou uma verdadeira batalha. O impacto da parada de atividades para o setor das artes é muito grande. Nesse sentido, o trabalho do conselho tem sido em articular formas de atender às diversas demandas, com busca de ações e fomento que resguardem os trabalhadores da arte em condições dignas de renda, para preservar os ofícios e retornar as atividades na pós-pandemia.
Quais os planos e sonhos, profissionais e pessoais?
Para mim é quase impossível desvincular os planos pessoais do profissional. Ambos andam tão próximos que se confundem. Venho buscando fortalecer a atuação do Grupo Ueba, seja nos palcos, na literatura e no trabalho junto ao Centro Cultural Moinho da Cascata. Estamos trabalhando com o canal Sótão da Flor no Youtube, que veio para ficar, mesmo após a pandemia. Também já começamos a pensar em passos para retomar as atividades presenciais com a circulação do nosso repertório teatral no futuro. Pessoalmente tenho a vontade de manter o pé na estrada como forma de intercambiar com o mundo, fazendo arte e conhecendo outras realidades, e quem sabe transformando o mundo ao meu redor em um lugar mais leve para se viver. Essa busca que faço pelo coletivo me fortalece como pessoa e me mostra um rumo mais humano que quero para a vida.