Primeira mulher presidente do Conselho Regional de Contabilidade do RS, em 70 anos de entidade, Ana Tércia enfrentou um processo eleitoral acirrado. Com uma trajetória permeada por desafios e aprendizados pessoais e profissionais, desbrava territórios onde a presença feminina aumenta, mas ainda tem muito espaço para crescer. Ana Tércia com suas paixões de quatro patas, Ganesha (Pastor Belga) e Vitton (Lulu da Pomerânia) / Foto acervo pessoal
Ana Tércia Lopes Rodrigues é uma mulher de fibra. O que não quer dizer que não houve momentos de dúvida. Desde cedo aprendeu com a mãe que teria de se destacar para ser respeitada, isso pela cor de sua peleMas nunca deixou que o preconceito a paralisasse, pelo contrário, o utilizou como combustível de motivação. Graduada em Ciências Contábeis, especialista em Administração e Planejamento para Docentes e mestre em Administração e Negócios, é a primeira mulher presidente do Conselho Regional de Contabilidade do estado, o CRCRS. Em abril, esteve na CIC de Caxias do Sul, onde falou sobre paradigmas contemporâneos que impactam carreiras e negócios.
Porto-alegrense, filha de mãe funcionária pública e pai motorista – ele natural de Caxias do Sul –, recebeu da mãe, Gladys, muito estímulo para os estudos. “Ela dizia que o melhor casamento que uma mulher pode ter é com o diploma, que esse é dela e ninguém tira”, relembra. Mesmo tendo formado família e adorar o convívio, casar e ter filhos nunca foi um projeto de vida para Ana. Atualmente coube a ela cuidar de Gladys, de 84 anos, que desenvolveu Alzheimer. “Sou a filha do meio de três irmãos e estou na fase de ser mãe da minha mãe. Vejo como uma oportunidade de retribuir tudo que recebi de ensinamentos, de apoio, que foram muitos ao longo da vida.”
Técnica em química, começou trabalhando nesse ramo industrial, onde permaneceu por quatro anos. No momento de escolher a graduação, porém, pela facilidade com números, mudou de área, “embora hoje entenda que a contabilidade não é uma ciência exata, e sim uma ciência social". Com uma carreira de 26 anos, iniciou já na época da formatura a trabalhar como contadora no CRC, naquele tempo, final dos anos 1980, uma profissão predominantemente masculina. “Hoje esse perfil mudou bastante, quantitativamente temos quase o mesmo número de homens e mulheres atuando e, sem sombra de dúvida, os cursos de contábeis estão formando mais mulheres que homens.”
No campo familiar, Ana não viveu poucos desafios. Quando a irmã mais nova sofreu um AVC, aos 40 anos, foi ela quem, em dois dias, voou a Madri para ajudá-la. Ana é também mãe de Jéssica, 27 anos, adotada aos seis. A menina, da família do então-marido, havia perdido a mãe. Comovida com a situação, resolveram adotá-la. “São coisas que mudam o rumo, assumir uma situação assim. Foi um aprendizado importantíssimo na minha construção de vida, de me modificar como pessoa para poder colocar limites a uma criança. Hoje lido com muitas pessoas que dependem de um posicionamento meu, de uma decisão firme, e acredito que o fato de ter lidado com a questão de uma maternidade que surgiu meio de repente me ajudou muito a amadurecer.”
Inquieta em relação à carreira e avessa a atividades rotineiras, sempre gostou de mudanças e desafios. Junto ao trabalho na entidade de classe, há 25 anos é professora na área acadêmica. Iniciou com um convite para lecionar na Faculdade São Judas Tadeu, depois na PUCRS, IPA e, atualmente, na Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, além de ministrar palestras e cursos de pós-graduação. De alguma forma acredita que todas as situações vividas a prepararam para o que vive hoje.
Para Ana, o fato de termos poucas referências femininas enquanto lideranças políticas faz com que as mulheres duvidem da própria competência. “Os homens não têm dúvidas da capacidade de ocupar determinadas posições porque já se enxergam lá, alguém já foi lá antes, os caminhos estão abertos. Normal para eles ser chefe, ser presidente. Nós não temos muitos modelos em quem nos inspirar.” Sobre ser a primeira mulher presidente do CRCRS, crê como principal lição que o trabalho planejado dá resultado. “Eu quis muito, sempre tive vontade, me preparei, mas por vários momentos tive dúvida. ‘Será que é isso mesmo? Será que vou dar conta?’ Me assustava um pouco quando outras presidentes em outros estados me diziam que nunca tiveram medo, que sempre tiveram certeza.”
Quanto ao preconceito por ser mulher e negra, o preparo para o bom combate veio de casa. “Sempre tive muita consciência do que ia enfrentar, o discurso da minha mãe era forte em relação a isso. Estudei em colégio particular e ela dizia que tínhamos que estudar mais que os outros. Na época, década de 1970, não se falava em politicamente correto, os coleguinhas diziam as coisas na cara. Conforme se vai crescendo e ascendendo socialmente, se vai encontrando cada vez menos pessoas da nossa origem. Isso não é bom para a sociedade. Se usar a diversidade como um intimidador, você não vai adiante. Chegar numa reunião com 20 ou 30 pessoas e ser a única mulher... se você absorver aquele impacto, paralisa. Mas pode chegar e pensar que agora tem uma chance de mostrar que mulher também pode estar numa mesa de lideranças. Nunca me intimidei.”
Membro da Academia de Ciências Contábeis do Rio Grande do Sul e conselheira fiscal da Parceiros Voluntários, Ana ainda traça como meta fazer doutorado, provavelmente em alguma área de Humanas, e tem muita vontade de atuar como conselheira de administração em empresas, “campo aonde ainda há poucas mulheres”. Em um relacionamento há 10 anos com Claudio Mariano Sá Rego, outras de suas paixões são os dois cachorros, Ganesha (Pastor Belga) e Vitton (Lulu da Pomerânia). No tempo livre, procura ler e assistir a filmes, que dão bons exemplos e subsídios para as palestras, e adora uma boa festa entre amigos.
Fonte: Afrodite 47