O país já foi visto como um dos piores para se nascer mulher. Hoje concentra mais de 50% das bilionárias self-made do mundo. Foco em um único ramo de negócio e distância do sistema político aparecem como as principais causas dessa nova realidade.
MUITO ALÉM da revolução industrial que tornou a China uma potência econômica na virada do milênio, hoje o país asiático é berço de algumas das maiores inovações em tecnologia e indústria. Com um PIB de US$ 12,2 trilhões, boa parte dessa economia vem do comércio, setor em que o país movimenta mais de US$ 5,7 trilhões, transformando-se em referência no chamado “novo varejo”. Para se ter uma ideia da escala, apenas em um dia de promoções no ano passado – o comemorado Dia do Solteiro –, o comércio digital chinês movimentou nada menos do que US$ 25 bilhões, um valor maior do que todas as vendas do e-commerce brasileiro em 2017.
Sim, todos os números da China são superlativos, o que não poderia ser diferente com os seus 1,3 bilhão de habitantes (num território não muito maior do que o do Brasil). Daí as pretensões também ambiciosas: “até 2030, todas as teorias, tecnologias e aplicações de inteligência artificial desenvolvidas na China vão liderar o mundo, tornando o país o polo de inovação mundial neste tema”, a meta de governo divulgada em 2015 pelo State Council, o Conselho de Estado que preside o país.
É POSSÍVEL? E as outras potências mundiais em tecnologia? Assistem o desenvolvimento rápido da China, onde as empresas trabalham suas inovações de forma prática, rápida e, principalmente, com excelência na execução. A disciplina chinesa conta muitos pontos para que os planos saiam do papel e encontrem terreno fértil para execução, não dependendo de ou esperando por promessas de governo ou apoio externo – uma lição que talvez tenhamos que aprender como nação.
Na Alibaba, oito das nove pessoas que receberam o grupo brasileiro eram mulheres
O poder feminino
O MOVIMENTO de investimento em inovação e tecnologia da gigante China não é segredo – o que tornou o país um dos principais centros de atenção nos últimos dois a três anos. O que talvez poucos saibam ou pouco se fale fora da China é dos movimentos internos que estão sendo feitos e que permitem esse avanço exponencial. É preciso, porém, se desprender de preconceitos para entender um pouco mais sobre o que acontece por lá.
Uma população majoritariamente rural, com predomínio de homens... receita pronta para a irrelevância da mulher. E aí reside um dos principais componentes de mudança cultural da China nos dias de hoje, e que pouco se fala no ocidente. Ainda que por muito tempo a China possa ter sido um dos piores lugares do mundo para se nascer mulher, hoje é o país com o maior número de bilionárias self-made – aquelas que construíram sua fortuna do zero, não herdando de família. De acordo com o relatório Richest Women in China, da empresa Hurun, de 2017, 49 das 78 bilionárias self-made são chinesas.
Uma reportagem da revista Forbes de 2017 apontou que são duas as principais características que distinguem as bilionárias chinesas das demais ao redor do mundo: primeiro, elas tendem a focar em um único ramo de negócio e, segundo, são geralmente inativas no campo político quando comparadas aos seus compatriotas homens. De fato, nos altos cargos do Partido Comunista da China (PCC) não há representação de mulheres. Ainda assim, poucos lugares no mundo viram nas últimas décadas uma mudança tão significativa no papel da mulher na sociedade.
Igualdade de gênero, uma política nacional
RESPEITAR as mulheres é um símbolo importante da civilização social e do progresso. Apesar da ainda desigualdade de gênero no país, desde 1949 o governo luta contra isso. Neste ano, mulheres de todos os grupos étnicos estabeleceram a Federação das Mulheres de Toda a China, com uma visão de que “quando mais mulheres trabalham, mais a economia cresce”. Em 1995 a China adotou a igualdade de gênero como política nacional básica. Em 2016, o Plano Quinquenal do país incluiu uma seção de promoção do desenvolvimento integral das mulheres. Desde que tal visão foi difundida e o Partido Comunista passou a promover essa igualdade de gênero, incentivando a entrada das mulheres no mercado de trabalho, a China viu o empoderamento feminino florescer.
Com uma população de 1,3 bilhão de habitantes, a China é berço de algumas das maiores inovações em tecnologia e indústria
A POSIÇÃO de segunda economia do mundo também cria um acúmulo de riqueza que deverá ser repassada para outras gerações. E isso inclui mulheres. O processo de empoderamento feminino chinês e das posições fortes nos negócios e na economia tem feito com que a China siga o caminho natural como o de outros países, nas Américas, Europa: modelos de sucessão de sucesso. Então, junto às bilionárias self-made, muitas são ou serão as mulheres sucessoras naturais dos negócios de família que transformarão a economia. E algumas que se destacam no mundo empresarial ainda decidirão seus próprios caminhos, como a filha do fundador da gigante de hardware Lenovo que, ao invés de assumir os negócios da família, é a presidente da Didi Chuxing, o Uber da China – a propósito, a Uber não tem mais operação naquele país.
Executivas são maioria
AO VISITAR as operações das gigantes de tecnologia chinesas, como Tencent, Alibaba e JD, o grupo de executivas que recebe as missões que os visitam chama atenção. Em recente visita de brasileiros a essas empresas, o grupo que recepcionava era sempre majoritariamente feminino. No Alibaba, das nove pessoas da empresa na recepção, oito eram mulheres (incluindo a vice-presidente da corporação). Ao conversar com uma das representantes do departamento de relações internacionais, ela afirma que isso, aos olhos deles, é muito natural. Não há estranhamento na posição de destaque que as mulheres têm alcançado no mercado de trabalho, além de as empresas adotarem políticas que permitem o desenvolvimento delas.
Executivas predominam na recepção das missões estrangeiras
Jack Ma, fundador do Alibaba e um dos grandes expoentes da “marca” China ao redor do mundo, durante palestra na Conferência Global sobre Mulheres e Empreendedorismo, em Hangzhou (2017), disse que elas são “o tempero secreto” do sucesso da sua empresa. Também alertou aos homens sobre a possível perda de seus empregos para mulheres e inteligência artificial nos próximos 30 a 50 anos. Destacou ainda que mais de um terço dos fundadores do Alibaba eram mulheres, margem similar às que ocupam hoje cargos executivos. No grupo, as mulheres representam cerca de 50% dos aproximados 60 mil funcionários. Segundo ele, a perseverança e a atenção aos detalhes são os diferenciais das mulheres que as tornam tão importantes no mundo dos negócios.
Controle de natalidade
UM DOS ASSUNTOS mais comentados sobre a sociedade chinesa é a sua política de controle de natalidade. A “política do filho único”, impulsionada a partir de 1979, visava limitar o crescimento da população (hoje gigante). Ainda que houvesse exceções, essa regulamentação esteve vigente até 2016, quando o governo passou a permitir que os casais casados chineses pudessem ter dois filhos. As consequências da determinação foram de fato severas e terríveis – o controle era feito mediante grandes multas, mas também, sabe-se, por esterilizações e abortos forçados. Agora o país dá sinais de que deve acabar de vez com qualquer controle, vendo o envelhecimento da população e o desequilíbrio na quantidade de homens e mulheres, já que o nascimento era muito maior de meninos com a política. É bastante possível, observando os sinais já dados pelo governo, que a nova Constituição, que passa a viger a partir de 2020, elimine definitivamente do país tão criticado controle.
Empreendedorismo em ascensão, mas novo
AINDA QUE o empreendedorismo feminino esteja em ascensão na China, o fenômeno é de fato novo. Shirley So, empreendedora de Beijing, de uma academia+café, a GLO Kitchen+Fitnesse, destacou que na geração de seus avós era dado suporte às mulheres para buscarem estudos e adentrarem no mercado de trabalho. “Mas uma mulher começar um novo negócio é algo que acho que tem acontecido só nos últimos 20 anos”, avalia.
E se, de fato o começar o próprio negócio é algo relativamente novo, e a China já detém mais de 50% das bilionárias self-made, o que podemos esperar desse país? Talvez seja difícil prever, pois a velocidade com que o chinês escreve seu futuro é assustadora. O que podemos aprender? Talvez o que observa Jack Ma: “As pessoas dizem que nesta era deveríamos ajudar as mulheres e dar a elas mais oportunidades, mas eu acredito que são as mulheres que devem ajudar os homens!” Definitivamente, são tempos incríveis para testemunhar o progresso das mulheres. E ainda há muito por vir!
Por Graziela Scheid Tesser. Fonte Afrodite