por Vivian Kratz
Os números não parecem corresponder a uma realidade de tanta (aparente?) liberdade feminina: segundo dados do IBGE e do International Business Report, apenas 19% das empresas têm mulheres em cargos gerenciais, 53% das companhias brasileiras não têm mulheres em posições de liderança e, em 2017, o índice delas nos cargos de CEOs e diretorias executivas era de somente 16% no Brasil.
Na política, somos minoria nas cúpulas de todos os partidos, apenas quatro em cada 10 filiados e, embora o número de eleitas para Câmara e Assembleias tenha aumentado nas últimas eleições, os partidos políticos ainda são ambientes hostis à presença feminina – no Brasil estamos na 152ª posição entre 192 países em representatividade feminina, de acordo com levantamento da União Interpalamentar Internacional.
De outro lado, somos 57% dos estudantes de graduação e 61% dos concluintes, segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Apesar disso, na docência, os homens são maioria. Na proporção de alunos com defasagem de idade em relação à etapa que cursam – importante indicador de rendimento escolar – a do sexo feminino é menor que a do masculino em todas as etapas de ensino. Ou seja, a mulher estuda mais, tem desempenho melhor, mas ocupa menos posições de poder, além do ganho financeiro inferior ao do homem. Por quê?
POR TRÁS DOS NÚMEROS
Uma combinação de fatores que passa por questões histórico-culturais ainda presentes na nossa sociedade e um mais aguçado autoconhecimento da mulher quanto às suas potencialidades parece explicar tal paradoxo. Para Beatriz Peruffo, advogada e palestrante, fundadora da Rede Mulheres Mais Felizes e presidente da Business Professional Women (BPW) Bento Gonçalves, a criação machista e repressora ainda hoje em prática em muitas famílias, mesmo que de forma velada, é crucial para se entender os motivos de não ter mais mulheres utilizando e sendo chamadas para espaços de poder, sejam corporativos, em empresas e organizações, ou políticos, não apenas partidários, mas institucionais, em associações e entidades.
“Em geral não nos reconhecemos machistas, apontamos o dedo para o outro, mas ainda hoje educamos dando um brinquedo para a menina e dizendo ‘fica aqui quietinha, senta, te comporta’ e, para o menino, uma bola para ir jogar lá fora”, observa Beatriz. A mensagem subjacente a esse modo diferente de lidar e incentivar os pequenos é que eles podem conquistar o mundo, explorar, ir longe, sair de casa, enquanto elas, para conseguirem algo na vida, precisam falar baixo, não gritar, não se posicionar e permanecer no ambiente (seguro?) doméstico.
Isso é tão forte – e talvez tão inacreditável para quem faz parte do que Beatriz chama de raras exceções, quem teve criação diferente, voltada para competências, com elogio e incentivo a diferentes atividades, independentemente do sexo –, que não apenas homens, mas também mulheres seguem hoje, em 2019, educando nesse modelo repressor, muitas vezes sem nem perceber. São mensagens aparentemente muito sutis, mas que, continuadamente ouvidas, vão deixando marcas profundas, orientando e limitando o modo de agir feminino: “não pode”, “não vai”, “fica quieta”, “é perigoso”, “isso não é lugar de menina”.
LÍDER DE SI MESMA
Como uma mulher sem voz em casa, e que no fundo não acredita que pode, terá encorajamento para se posicionar em outros ambientes, como no trabalho, pedindo uma promoção, ou organização política, candidatando-se à presidência? Para a jornalista e coach Marciele Scarton, palestrante sobre protagonismo e liderança femininas, antes de líderes nas empresas e na política, a mulher precisa ser e se sentir líder de si mesma, o que passa por se conhecer bem e estar fortalecida acerca de sua essência e do que almeja, seja onde for.
“É preciso contextualizar. Ao longo da história da cultura do patriarcado a mulher foi muito oprimida, diminuída, abusada e viveu numa posição muito rasa em relação ao homem. A partir da inserção no mercado de trabalho viu uma possibilidade diferente e a agarrou com unhas e dentes, num primeiro momento com as mesmas armas que via os homens, tão soberanos, possuírem: uma voracidade, aparência forte e voz enérgica. O comportamento era uma defesa, ela precisava agir assim para entrar nesse ambiente.” A própria moda refletiu essa influência, segundo Marciele, que lembra dos terninhos com ombreiras enormes. “Só que é impossível sustentar algo que não somos. Mulher é maleabilidade, entendimento, é mediadora e é também uma força incrível, arrebatadora, mas diferente.”
Então, ser uma profissional nível A não pode significar ter as mesmas características dos colegas homens, porque cada um tem suas especificidades. Exigir – e muitas vezes são as próprias mulheres que se fazem essa exigência – que elas sejam reconhecidas profissionalmente por serem iguais aos homens é machismo, avalia. “Na metáfora que trago na palestra Na Cabeceira da Mesa, traço um paralelo entre uma mulher que nunca sentou à mesa para fazer as refeições, que se alimentava sempre num canto afastado da cozinha, e a atual, que, se quiser, senta na ponta de qualquer mesa, seja na casa dela, no ambiente corporativo, qualquer lugar. A conquista do mercado de trabalho é gigantesca para o feminino, só que a mulher estava nessa posição tão abaixo do homem na sociedade que para chegar nessa importante conquista de trabalhar fora e de estudar precisou antes de outras duas importantes e mais essenciais conquistas: o direito de desejar – e, para mim, essa é a maior –, e o direito de ser livre, para agir conforme suas vontades.
Outro ponto que explica a baixa ocupação de posições de liderança na sociedade é que, muitas vezes há abertura, mas não há empatia suficiente para que a mulher se mantenha ascendendo na carreira. O momento da maternidade é um exemplo, com pressões para que não se engravide, garantindo o emprego ou até perdendo a posição com o fim da licença. “O que os homens podem fazer para colaborar nesse processo? Se posicionarem mais nesse sentido, pais começarem a ter uma paternidade ativa, exigindo do trabalho o mesmo espaço que as mulheres para cuidar dos filhos”, defende a jornalista. Na contramão do mercado, há iniciativas que merecem destaque, de companhias nacionais e internacionais e startups contratando mulheres no fim da gestação, de olho na competência dessas profissionais, independentemente do momento transitório de vida.
MULHER NÃO VOTA EM MULHER?
Na política fica ainda mais evidente, olhando-se para todo o contexto, porque é tão difícil para as mulheres entrarem. Com direito ao voto apenas a partir de 1932 no Brasil, argumentava-se anteriormente que a mulher era essencial à ordem e à harmonia da família, e sua presença nas eleições a afastaria do lar e do cuidado dos filhos. Desde 2009 a lei obriga que no mínimo 30% das candidaturas proporcionais sejam de um sexo, a chamada “cota de gênero”, mas apenas em 2012 isso de fato aconteceu. No ano passado, a exigência passou a ser para que também as verbas fossem destinadas com um mínimo para as candidaturas femininas, mas seguem havendo fraudes e as chamadas “candidaturas laranjas”.
De uma forma geral, as mulheres ainda precisam ser reforçadas de que podem pensar por conta própria, dizer o que pensam e projetar o futuro. “Ainda temos as que perguntam para o marido ou para o pai em quem devem votar, e homens dizendo a elas em quem devem votar. Então, imagina se essa mulher terá condições de ser votada?”, questiona Beatriz.
Para a vereadora Paula Ioris, fundadora do movimento suprapartidário Política de Saias, que objetiva despertar a participação feminina nesse meio e apoiar a preparação delas para as eleições, o preconceito e a falta de sensibilização das próprias mulheres sobre sua valiosa contribuição na tomada de decisões estão entre os motivos para um retrato com tão poucas mulheres nos cargos eletivos. “Primeiro, o preconceito com a política. Infelizmente, culpa da politicagem que vivemos e assistimos diariamente. É importante diferenciar uma coisa da outra. Segundo, as mulheres não descobriram a falta que fazem, pela sua pró-atividade, visão sistêmica, predisposição colaborativa e agregadora, determinantes no estabelecimento de ações. Não é para tirar o lugar dos homens, mas para ocupar um espaço que é delas, o que não tem ocorrido. No Brasil, pouco mais de 10% é a representatividade feminina na política”, destaca.
Sobre a máxima “mulher não vota em mulher”, Marciele comenta que vem da cultura do pratriarcado, que sempre tentou colocar mulheres umas contra as outras, ao contrário do movimento pela sororidade (abordado na matéria Especial da Afrodite #48), no qual que as mulheres se apoiam entre si. “Isso acaba sendo reforçado por famosas se digladiando na mídia no fim de um namoro, por exemplo, ou na hora em que a música que manda um ‘beijinho no ombro para as inimigas’ vira hit, é uma cultura para criar rivalidade entre as mulheres e que pode se refletir nas urnas”, analisa.
LEVANTAR O BRAÇO
Tanto na política quanto nas organizações há também a questão da cobrança. É comum ouvir que mulheres líderes estão lá porque, se solteiras, estão se envolvendo com fulano ou sicrano; se casadas, porque são filhas ou esposas de alguém influente. “Sempre há a ideia de que tem um homem por trás dela. E, no primeiro erro – e todos nós falhamos, como seres humanos – vem a fala de que ‘errou porque é mulher’. Isso é violento, e não são só os homens que falam, são mulheres falando contra mulheres”, enfatiza Beatriz.
Para ultrapassar essas barreiras, precisamos exercitar esse poder de decisão, aprendendo a erguer o braço, por exemplo, afirma Beatriz. “Aprendemos a levantar o braço como uma miss, a mão não passando da altura do ombro. Então, quando nos perguntam “quem quer assumir tal cargo?” um homem levanta o braço alto e diz “eu”. E isso não é uma impressão, há estudos que comprovam que os homens se colocam para a ocupação de cargos de poder mesmo não tendo todos os requisitos necessários, e a mulher espera ter mais qualificações para se candidatar, mais uma pós, um mestrado, um pós-doutorado, e ela ainda assim sente que não está pronta.
“Quando falamos na busca da igualdade de direitos, oportunidades e resultados, apenas queremos que, por exemplo, meninos e meninas recebam a bola e ouçam ‘vai lá fora, joga, tu consegues!’. Não queremos ser iguais, porque somos diferentes, apenas queremos igualdade de oportunidades, para que a menina tenha condições de dizer, ‘não, eu não quero jogar’, ou ele possa dizer o mesmo. Por que o menino tem que ter o estereótipo de jogador de futebol e a menina de miss? São estereótipos criados culturalmente por uma sociedade machista, que diz que o homem tem que ser a figura forte e a mulher tem que ser frágil, bonita, educada, aguardando o marido chegar em casa para servi-lo.”
Poder de escolha
“A educação que nossos avós e pais receberam provém de uma sociedade machista, por isso não posso dizer simplesmente que eles estão errados. Tenho que, com o meu exemplo de vida, não só com a minha fala, mostrar que sim, as mulheres podem. Podem o quê? Escolher! A minha avó apanhou por ser pega com um livro do irmão, porque mulher não podia estudar. Ela me contou isso chorando quando eu era criança, e fui ensiná-la, então, a ler e escrever o nome. Uma conquista pessoal dela como indivíduo de direitos que me emociona até hoje. A educação da minha mãe e tias foi para não trabalhar fora, algumas até conseguiram sair desse contexto, mas todas receberam a formação para que o bife maior fosse para o pai, depois os filhos comeriam e, a mãe, a mulher, por último. Essas são, culturalmente falando, as famílias machistas. E se pararmos para pensar, quantas famílias são assim ainda hoje? Tive o privilégio de ter um pai e uma mãe que se preocuparam muito com a educação, um ensino forte, para que eu pudesse escolher. Ouvíamos diferentes emissoras de rádio para ter as diferentes visões. Para minha mãe eu precisava ainda ser ‘a Miss Brasil’, a menina educada, sorridente, mas, claro, inteligente. E o resultado de tudo isso é quem me tornei: alguém que trabalha com um propósito enorme, que é o fortalecimento da mulher. Sou mãe de duas filhas que têm total liberdade de escolha para serem mães, se quiserem, porque é uma decisão delas. É gratificante poder olhar para trás e dizer para aquela menina Beatriz, cheia de medos, pudores, inseguranças, tímida que, sim, é possível.”
Beatriz Peruffo, advogada, presidente da BPW Bento Gonçalves e palestrante há 25 anos sobre empoderamento feminino
Protagonismo feminino
“O livro Mulheres do Interior (Marciele Scarton e Fernanda Tomasi, 2013) inspirou a palestra Na Cabeceira da Mesa, sobre protagonismo feminino. A partir dela recebi demandas de atendimentos de mulheres para que pudessem de fato integrar as sete questões que as incentivo a praticarem, que inclui clareza sobre o que querem, coragem, independência e produtividade. Busquei, então, uma capacitação que, somada às minhas pesquisas e experiências com mulheres, transformei num método que chamo Realização Feminina, no qual trabalho esses pontos. Recebo mulheres competentíssimas que muitas vezes param de avançar, ou se sentem enfraquecidas diante das pressões do mercado. Sem conseguir conciliar vida profissional e pessoal, vão se fragmentando, se dividindo, ‘tenho que ser uma no pessoal e outra no trabalho’, quando somos um ser integrado. Temos que carregar a nossa essência para o trabalho, não tenho como deixar quem eu sou em casa e vestir uma armadura para o ambiente profissional. Essa dissonância faz com que elas pensem em abrir mão de carreiras maravilhosas que construíram, por falta de confiança, por não conhecerem suas forças, que são diferentes das dos homens, mas não menores ou menos importantes. O que vemos muito na nossa sociedade são mulheres que muito cedo se jogam na batalha, trabalhando toda essa casca de competências técnicas e imagem exterior, mas esquecendo de fortalecer seu interior e tentando escondê-lo. E é essa essência que dará sustentação em qualquer posição que almejarem.”
Marciele Scarton, jornalista, coach e autora da palestra Na Cabeceira da Mesa