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O SUOR ESCORRE PELO rosto em gotas intermitentes. Raimundo empapou um lenço e a manga da camisa na tentativa de estancá-lo. Nem o ventilador ligado consegue abrandar o calor. É quase final de mês. O outono já apontou no calendário. Só no calendário. Se pudesse, estaria na praia. Mesmo com a água fria, mesmo com a areia infestada de cães vadios, mesmo assim, se pudesse, estaria na praia. Porque na praia sopra uma brisa aos finais de tarde, um vento que chega ao rosto como uma massagem, um colírio, um sussurro. Porque na praia está Dora, e Dora é o vento, e Dora é o colírio, e Dora é o sussurro. Já faz 90 dias. Em três meses, a pele branca e rija de Dora já deve estar dourada e rija.
Quantas vezes esse suor que agora escorre pelo rosto dele misturou-se à pele dela, resultando numa substância pegajosa que os unia em uma única pessoa, que os fazia um único ser? Os dois no quarto, sobre cama, a se beijar, a se amar, depois olhar para o teto encardido e, então, dormir. Esse mesmo quarto em que se encontra Raimundo agora, solitário. O quarto que também é a sala, o resumo do apartamento.
Por baixo da porta de entrada ele vê a luz que vem do estreito corredor. Depois, ouve passos a percorrer as lajotas esverdeadas. São antigas, as lajotas, sinal que o tempo reside no prédio feito um inquilino remido. Não são os passos de Dora. Ela pisa forte. A ponta do salto de Dora não arranha o chão, feito unha na carne. Choca-se contra ele num barulho seco, o martelo no prego, o soco no estômago. O que Raimundo ouve são pés indecisos, como se não soubessem para onde carregar o corpo que se equilibra sobre eles. Se fosse Dora, uma avalanche revelaria sua presença, como uma pré-estreia anuncia um filme do Spielberg.
Raimundo aproxima-se da porta. Sabe que não é Dora. Mas, e se fosse?
Se fosse, ela bloquearia com o dedo polegar o olho mágico. Tocaria a campainha intermitentemente. Depois, soltaria uma gargalhada estridente, ordenaria que ele abrisse a porta e, antes mesmo que Raimundo obedecesse, começaria a tirar a roupa. Raimundo se entregava àqueles caprichos sem exigir contrapartida. Não era uma tortura psicológica, nem física. Era uma tortura amorosa. Às vezes, como agora, era feita de ausências, como se Dora não existisse. Ou seria ele, Raimundo, quem não existiria?
Será que era isso o que ela fazia quando não estavam juntos: inventava Raimundo? Redigia suas falas, impunha-lhe temores e fraquezas? Quando apagava parte do texto, era como se a memória dele fosse removida. Quando reescrevia, era para corrigi-lo. Quando a inspiração sumia, era como se deixasse de visitá-lo. Como agora.
Raimundo sentia-se como numa obra de ficção. Sem o criador a lhe impingir palavras à boca, a lhe direcionar os sentidos, era um ser inanimado, um fantoche, um títere, um joão-bobo.
Porque um personagem sem seu criador é nada.
Porque Raimundo, sem Dora, era nada.
Ramão Olimpio Palacios Marques
Jornalista