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NE, MANDO NOTÍCIAS por aqui: eu recebi o convite para escrever um texto sobre o feminino. Gostei e não gostei do convite. Gostei porque o tema é importante, urgente. Não gostei porque, no momento, eu de repente preferiria ficar em silêncio, introvertido, respeitando a passagem pessoal que está em curso em mim, respeitando o meu atravessar-a-rua-larga.
Curioso que sou, tu sabe que eu recém li a biografia da Susan Sontag e que a leitura me surpreendeu com iluminações novas em relação ao feminino, ao feminismo. No fim da página 214, o biógrafo diz que a Sontag “tinha aquele apelo natural, não trabalhado, sem maquiagem, sem roupas caras”. E tinha sobrancelhas meio grossas, como as tuas, sobrancelhas que passavam um recado de insubmissão.
Seria uma maravilha escutar a opinião da Sontag a respeito de certos fatos contemporâneos, como por exemplo o novo aplicativo da vez, o App que, numa foto de rosto, inverte o gênero da pessoa. Pelo que li e assimilei sobre a personalidade da Sontag, ela caçoaria das mulheres que se submetessem ao aplicativo. Caçoaria mesmo. Em voz alta. E as enquadraria num grupo intermediário de feminino, um feminino que não se basta muito.
Ne, uma das coisas que guardarei são os teus comentários sobre Mulheres que Correm com Lobos. Principalmente aquela parte dos renascimentos simbólicos, das ressignificações, dos novos começos dentro de uma mesma história. As histórias às vezes terminam porque as pessoas se esquecem de apertar o botão do reset. Cinco, seis anos juntos e escorregam na cilada de achar que o filme seguirá na mesma velocidade de reprodução. O filme precisa do reset (ainda há tempo para o reset), porque o corpo muda, os pensamentos mudam, os traços-vincos mudam.
Eu te conto por aqui outra novidade: ler a biografia da Sontag fez com que eu voltasse a pensar forte na Débora. Fazia tempo que isso não acontecia com tanta intensidade – tu sabe que a Débora aconteceu para mim nos seis primeiros meses de 2013, todos os dias desses meses, inclusive nos fins de semana, constituindo uma experiência radical que eu tive em relação à alteridade feminina, ao gênero oposto ao meu. Escrever aquelas 142 páginas com a voz da Débora em primeira pessoa foi – no sentido da literatura – um desafio danado, um xadrez contra o computador.
E o inesperado é que a minha concentração está outra vez na Débora, quase lá no fechamento narrativo, os pés dela na margem da Av. Paulista, o fim de tarde, a visão ou miragem (não sei) que ela tem de algo pousando no seu braço, como que marcando um instante talvez de não retorno, um instante de futuro-ilusão ou de presente-reacreditado, quem é que sabe, a Débora de repente voltando a ter oleosidade e suor, voltando a ter para mim um significado, uma simbologia da qual eu agora não quero abrir mão.
Marcos Mantovani
Professor e escritor