por Vivian Kratz
JORNALISTA E PSICÓLOGA
Pare de perseguir o corpo perfeito. Simplesmente pare, porque corpo perfeito não existe. Transtornos alimentares e de distorção de imagem são sérios e podem ser fatais. Eles têm começado cada vez mais cedo, em meninas de oito anos, influenciadas por hábitos familiares inadequados e uma obsessão por um padrão de beleza inatingível, muitas vezes incentivado por ideias como a de que “só serei feliz e aceita quando for magra”
“Por mais de 20 anos vivi uma guerra interna. Odiava meu corpo, minhas curvas, meu quadril largo, minha estrutura grande. Nunca gostei de ser chamada de mulherão – algo que muita gente consideraria um elogio. Eu era pesada demais, gorda demais, inadequada demais.” Assim a jornalista farroupilhense Daiana Garbin, casada com o também jornalista e apresentador Tiago Leifert, introduz seu livro Fazendo as Pazes com o Corpo – Uma jornada para vencer a relação doentia com a comida e a obsessão pela forma perfeita (2017).
Dona de uma “beleza que choca”, como descreve o marido, por muitos anos Daiana praticamente só vestia preto e nunca exibia os braços, por vergonha de sua “largura”. Ao ir trabalhar, tinha medo que rissem dela. A primeira vez que se sentiu gorda foi aos cinco anos, na aula de balé, ao se comparar com as coleguinhas – se achava “fora do padrão”. Aos 12, passou a tentar não comer. Com os pais trabalhando fora o dia inteiro, pulava refeições sem ninguém perceber e passava dias a água e maçãs. “A única coisa que eu desejava era ser magra, seca, sonhava em ver meus ossos aparecendo sob a pele. A comida controlava minha vida, meus pensamentos, minhas ações.”
Sempre que engordava, ficava com vergonha das pessoas, cancelava compromissos, mentia que estava doente para não ir à escola ou trabalhar. “Sentia um medo terrível e inexplicável da comida, mas, mesmo assim, não conseguia me controlar diante dela. Comigo era restrição extrema ou exagero. Não havia meio-termo.” Entre a vontade de devorar tudo e o pavor de engordar, desenvolveu uma relação doentia com o alimento e uma obsessão por tentar se ver mais magra para, assim, se sentir mais feliz e em paz.
Dietas, remédios e cirurgias
A jornalista fez de tudo e só encontrou mais sofrimento: seguiu todas as dietas possíveis, ficou quase dois anos sem comer carboidratos e, como não adiantava, começou a tomar remédios para emagrecer, acabou se viciando em anfetaminas, endividou-se para pagar a primeira cirurgia plástica, se submeteu a três lipoaspirações. Nada resolveu. “Cheguei a perder 13 quilos e ainda queria perder mais 10. Ainda assim, nunca achei que tivesse transtorno alimentar. Para mim, meu desequilíbrio em relação à comida era um sinal de fraqueza. Passava o tempo todo tentando comer menos, vivia em dieta e ficava com raiva quando sentia fome, porque achava que não deveria sentir. A alimentação era uma fonte inesgotável de culpa e frustração.”
Daiana tem 1,70m e já variou, nos últimos 20 anos, de 57 a 72 quilos, o que corresponde a um Índice de Massa Corporal (IMC) considerado normal pela Organização Mundial da Saúde. Ou seja, nunca esteve sequer com sobrepeso. Nem mesmo ter sido eleita rainha da Fenakiwi em sua cidade natal, ter trabalhado na TV, numa grande emissora do país, e os inúmeros elogios a sua beleza física a fez parar de se sentir inadequada quanto ao corpo. “Hoje sei que nunca fui gorda de fato. Mas saber e sentir são coisas totalmente diferentes.”
Aos 34 anos, quando não aguentava mais viver em guerra com a comida e consigo mesma, entendeu que estava doente e que precisava de ajuda. “Fui a uma médica psiquiatra, tive o diagnóstico de transtorno alimentar não especificado e comecei o tratamento.” O quadro é uma das manifestações dos chamados Transtornos Alimentares e se caracteriza por um comportamento desequilibrado em relação à comida que gera prejuízos reais à saúde e causa profundo sofrimento, mas que não se encaixa em todos os critérios de outros transtornos relacionados, como anorexia e bulimia, por exemplo. O sintoma que mais fazia a jornalista sofrer era a distorção da imagem corporal, que faz com que se enxergue o corpo de maneira totalmente diferente dos demais.
As causas e a cura
Entre as causas para tanto sofrimento, não há nada específico que possa ser responsabilizado isoladamente, o que existe é uma combinação de fatores. Entre eles estão a transmissão genética (estudos sugestivos); alterações de neurotransmissores; a obsessão sociocultural por um corpo magro e perfeito em uma sociedade que exalta atrizes e influenciadoras digitais com peso abaixo do saudável e ridiculariza, muitas vezes, obesos e pessoas acima do peso, inclusive nos contextos de trabalho; conflitos familiares e pais superprotetores; características psicológicas como perfeccionismo, rigidez comportamental, necessidade de total controle e autocrítica excessiva, entre outras.
Não à toa o primeiro livro de Daiana – ela já prepara o segundo, com previsão de lançamento para o segundo semestre – virou best-seller no país, pois desperta uma necessária discussão sobre o lado nocivo da indústria da beleza e da mídia com a perpetuação de um irreal e inatingível padrão de beleza. Em 2016 ela pediu demissão do emprego de repórter de TV e criou o canal EuVejo, no YouTube, onde entrevista profissionais, discute questões relativas à autoimagem, autoestima, saúde e alimentação, além de mostrar como aprendeu a desenvolver autocompaixão e o prazer de comer sem culpa, sem excessos e sem restrições.
“Hoje sinto-me confortável na minha vida, na minha mente, no meu corpo, sendo quem sou. Não sinto mais vergonha de mim porque aceito a minha imperfeição. Percebo-me feliz em vários momentos porque sei que a dor sempre existirá, é parte da vida. Lido melhor com minhas angústias porque sei que não existe ser humano sem angústia. Fiz as pazes com a comida e já consigo comer de tudo, sem exageros. Consigo ter uma alimentação saudável e prazerosa. Aprendi a comer com calma, atenção e prazer. Aprendi também a amar e respeitar meu corpo. E, acima de tudo, aprendi que cuidar-se não é ter um corpo bonito para mostrar para os outros, e sim ter um corpo confortável e saudável para você morar”, ensina.
Daiana assegura não ser contra procedimentos estéticos, mas diz que é imprescindível questionarmos os motivos e se revela preocupada com fenômenos como a chamada harmonização facial, na qual jovens cada vez mais jovens, aos 19 anos por exemplo, já estão fazendo botox, preenchimentos e manipulando suas faces. Ela observa que se pode emagrecer muitos quilos, transformar o corpo, o rosto, e mesmo assim continuar tendo uma imagem corporal insuportável para si mesma.
“Somos mais de 7 bilhões de pessoas no planeta e ninguém é igual a ninguém. Como pode haver um ‘padrão de beleza’? As mulheres não podem mais achar que o que elas têm de mais importante para oferecer é a imagem corporal e reduzir o corpo a simplesmente uma imagem. O nosso corpo não é uma imagem, não é um objeto, ele é o nosso instrumento de vida. É por meio dele que sentimos o prazer e a dor, que nos movimentamos. Adoecemos quando reduzimos o corpo a uma imagem e a um objeto.”
Os transtornos alimentares
Caracterizados como uma perturbação persistente na alimentação ou no comportamento alimentar que resulta no consumo ou na absorção alterada de alimentos, os transtornos alimentares também comprometem significativamente a saúde física ou funcionamento psicossocial do indivíduo. Podem se manifestar como:
Anorexia nervosa: restrição drástica da ingestão de alimentos, medo intenso de ganhar peso e distorção da percepção corporal. Pode ser do subtipo restritivo (come pouco) ou purgativo (usa artifícios inapropriados para eliminar a pouca comida ingerida, como laxantes e diuréticos).
Bulimia nervosa: episódios recorrentes de compulsão alimentar seguidos de comportamentos compensatórios para impedir o ganho de peso, como indução de vômito, uso de laxantes, diuréticos e outros medicamentos, jejum ou excesso de exercícios.
Compulsão alimentar: episódios recorrentes de ingestão de quantidades exageradas de comida seguidos de sofrimento intenso. Deve incluir pelo menos três dos seguintes aspectos: comer muito rápido, até se sentir desconfortável, mesmo sem fome, sozinho por vergonha do comportamento e sentir-se deprimido ou culpado após se alimentar em exagero.
Transtorno de ruminação: regurgitação repetida dos alimentos após ingeridos. O alimento deglutido é trazido de volta à boca sem náusea ou repugnância. Pode levar a quadros graves de desnutrição.
Pica: ingestão persistente de substâncias não nutritivas, não alimentares, por no mínimo um mês, não fazendo parte de um comportamento cultural. Exemplos: terra, papel, fios, talco, cabelo, detergente, pedras, sangue, gelo. É raro, acomete mais crianças pequenas e gestantes.
Transtorno alimentar restritivo/evitativo: recusa crônica aos alimentos, levando a não satisfação das demandas nutricionais ou energéticas necessárias. Pode se basear em aversão a determinadas características dos alimentos, como aparência, odor, textura, cor. Em casos graves, a desnutrição pode ser fatal.
Outro transtorno alimentar especificado: essa classificação é utilizada quando há vários sintomas, mas não são satisfeitos todos os critérios necessários para um dos transtornos anteriores. Estão citados no Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (2013), anorexia nervosa atípica, transtorno de purgação e síndrome do comer noturno.
Transtorno alimentar não especificado: classificação mais ampla, que abrange casos inespecíficos. Os sintomas característicos, como sofrimento intenso relacionado ao comer ou ao parar de comer, e significativo em nível social e profissional estão presentes, mas não se encaixam em todos os critérios necessários para nenhum dos transtornos específicos.
Transtorno dismórfico corporal
O TDC é outra forma de sofrimento relacionada à beleza, que não se trata de um transtorno alimentar, mas uma dificuldade do espectro obsessivo-compulsivo. Quem tem esse problema sofre profundamente com os “defeitos” que imagina em sua aparência física, considerados leves e às vezes até imperceptíveis para os demais. O cantor Michael Jackson, com suas inúmeras plásticas e intervenções estéticas, é um exemplo clássico. O TDC acomete entre 1% a 2,4% dos adultos no Brasil.
As estatísticas
Os números correspondem aos registros que chegam aos serviços
de saúde, mas podem ser ainda maiores, devido à vergonha de algumas pessoas em procurar ajuda, ao não reconhecimento dos sintomas e à falta de condições financeiras.
:: No Brasil, entre 1% e 3% da população geral e 4% dos jovens com idade entre 12 e 20 anos sofrem de algum tipo de transtorno alimentar, de acordo com dados dos livros de psiquiatria.
:: Apenas 50% dos pacientes com anorexia e bulimia alcançam recuperação completa.
:: Um a cada cinco pacientes com anorexia morre por complicações clínicas ou comete suicídio.
:: Segundo dados do Serviço de Infância e Adolescência do Hospital de Clínicas, os transtornos alimentares têm sido identificados cada vez mais cedo, por volta dos oito e 10 anos de idade. Junto com a anorexia, a bulimia é o distúrbio mais frequente.
:: Apesar de mais comum em meninas, os transtornos alimentares estão aumentando no gênero masculino, principalmente entre os 10 e 14 anos de idade.
Alerta
Os transtornos alimentares e de imagem são condições sérias e que podem levar à morte. Exigem tratamento adequado, multidisciplinar, que inclui médicos, atenção psicológica, familiar e nutricional. Ao perceber os sinais em você ou em alguém que você ama, não deixe de procurar ajuda especializada.
Para ler e assistir
Filme - O mínimo para viver Keanu Reeves interpreta um médico não convencional que desafia uma jovem com anorexia a enfrentar sua condição e abraçar a vida. |
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Documentário - Thin (Magra) Quatro jovens que tratam anorexia e bulimia numa clínica falam sobre seus problemas emocionais e a visão que têm dos próprios corpos. |
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Livro - Fazendo as Pazes com o Corpo Uma jornada para vencer a relação doentia com a comida e a obsessão pela forma perfeita, de Daiana Garbin (editora Sextante) |