Por Thaís Helena Baldasso
Fim de um ciclo, início de outro. O próximo ano já bate à porta e a maioria das pessoas está exausta, contando os dias para encerrar a jornada. Na vida real, é trabalho acumulado, falta de tempo, cobrança de todos os lados, cansaço, culpa. Um mix de sentimentos que deixam nossas emoções à flor da pele. Na vida online, é a constante exigência para atender às expectativas do outro e, muitas vezes, acobertar as infelicidades cotidianas. É o retrato do dia a dia operado pelo piloto automático.
E onde fica nossa essência? Nossas vontades e desejos? Como mudar essa realidade para ter um 2023 mais leve, verdadeiro e significativo? Conversamos com diferentes profissionais sobre o assunto e todos comungam da mesma ideia: é hora de buscar o autodesenvolvimento e nos permitir ser quem realmente somos. Sem filtros.
MUDE CAMINHOS
"Estamos imersos de tal maneira no universo virtual, glorificando a vaidade e a eficiência, que se faz necessária uma revisão dos conceitos para uma vida feliz. Mudar os caminhos neurais é um processo complexo, mas perfeitamente factível", defende o escritor e filósofo Gilmar Marcílio. Ele acredita na capacidade mental de estabelecer novos paradigmas, absorvendo uma realidade que não obedeça, necessariamente, ao senso comum. "Gosto da sensação apaziguadora de me deixar envolver pelo silêncio, colocando de lado, por alguns momentos, essa avassaladora necessidade de opinar sobre tudo e todos", complementa, com a sabedoria de um bom observador. Para Marcílio, é um processo de limpeza dos detritos que vão se depositando em nosso interior.
Afastar-se do cotidiano para ver e viver a vida como ela realmente é, no entanto, não é um processo comum. Segundo a neurocientista Lívia Ciacci, o modo básico de funcionamento do cérebro usa condutas memorizadas para garantir a sobrevivência e economizar energia. Mudar gera desconforto e exige autocontrole e esforço. “Alguns autores já tentaram criar uma receita de como alterar um comportamento ou quanto tempo leva para criar um novo hábito, mas não funciona bem assim, nossas matemáticas não são exatas e muito menos idênticas entre pessoas diferentes. O autocontrole necessário no processo de mudança de comportamento ou de criação de um novo hábito é um recurso finito”, afirma com propriedade. Lívia destaca que o cérebro precisa de tempo para que nosso intelecto desenvolva novas formas de pensar e agir para constituir novas memórias e, com elas, novos comportamentos.
Educadora parental, Danielle Toigo aposta no autodesenvolvimento para transformar os dias e construir uma realidade mais prazerosa. "Existem muitos caminhos que nos levam a olhar para dentro, reconectar com nossa história e descobrir o que é realmente importante para nossa vida", defende. A psicóloga Rélin Hahn segue a mesma linha. "Conhecer-se é uma bússola diante de um mundo de possibilidades e nos permite ser mais assertivos em relação às nossas escolhas. Precisamos ‘re-tecer’ nossa noção do todo e colocar o foco nas nossas necessidades reais. Silenciar e aproximar relações."
O primeiro passo é reconhecer que estamos no piloto automático e investir em autoconhecimento, defende a neurocientista. Neste momento vale a leitura, a incorporação de novos hábitos, a escuta ativa de si mesmo, o respeito aos próprios limites e o cultivo diário do autocuidado. “Precisamos perder a idealização de uma vida feliz”, acrescenta.
DESAPEGUE DO QUE JÁ NÃO COMBINA COM SUA ESSÊNCIA
A mudança faz parte do processo de desenvolvimento cognitivo, diz Lívia. Quando estamos em desacordo com algo ou alguém, nosso cérebro avisa que aquela condição não nos leva adiante. Por isso, o melhor é ser transparente com nossos sentimentos, emoções e objetivos. “Estar aberto ao novo e aprender é uma habilidade decisiva para quem quer crescer”, defende. Danielle, por sua vez, observa que o desapego, além de difícil, não é imediato. É um processo que exige coragem para cuidar e deixar ir. “Muitos de nós entendem o luto apenas como a perda de alguém, mas o sentido do luto é mais amplo, está relacionado a algo que lamentamos – pode ser uma perda, uma escolha, um dar-se conta de que algo mudou e/ou que não faz mais sentido. Fomos socializados para obedecer a regras e padrões, nos desconectando de nossos ciclos e das nossas próprias necessidades”, pondera.
O desapego exige abandonar o conforto do que já conhecemos. Entender a impermanência de tudo pode ser o início de uma nova relação conosco e com o mundo, acredita Marcílio. “O verdadeiro entendimento passa pelo escrutínio do tempo, pelo afastamento emocional. Deixo que tudo repouse dentro de mim, para só mais tarde estabelecer juízos definitivos”, afirma. A educadora parental encontrou nas pequenas celebrações e lutos, sozinha ou de forma compartilhada, sua forma de aceitar o processo. “É um pequeno rito diário, onde silencio e relembro, primeiro os fatos que desejo enlutar (lamentar). Entro em contato com o que sinto e com o que gostaria que tivesse sido diferente. Depois, relembro os acontecimentos que merecem ser celebrados. Essa prática tem o poder de gerar autoconexão e uma visão ampliada sobre o dinamismo da vida”, ensina Danielle.
O cérebro sempre vai preferir a ideia que já conhece e acredita, mesmo que ela não faça qualquer sentido. As pessoas é que ficam justificando racionalmente suas crenças apenas para mantê-lo confortável, revela a neurocientista. Ela explica que só é possível abrir a mente para uma nova ideia por meio de um esforço intencional para se desapegar do conforto aprendido.
CULTIVE RELAÇÕES SAUDÁVEIS
Recuperar a capacidade de parar e ouvir com atenção o outro é uma necessidade para cultivarmos relações com significado, defende Marcílio. É um ato tão banal, comenta ele, mas completamente ausente do nosso cotidiano atual. “O ‘eu’ parece ocupar todos os espaços, como se a própria personalidade fosse um altar diante do qual todos deveriam se ajoelhar. Essa é uma triste tendência da nossa época. O sentido de bem comum parece ter se esgotado, dando lugar a um egocentrismo patológico.” Ciente de que a variedade de escolhas nos tornou seres ávidos pela novidade, o filósofo diz pensar em três palavras quando classifica relacionamentos saudáveis: admiração, fidelidade e respeito.
O autoconhecimento aparece mais uma vez como uma ferramenta, segundo Danielle, para selecionar relações saudáveis e verdadeiras, que atendam às necessidades de ambas as partes. “Não acredito que viemos ao mundo para sermos felizes, e sim para aprender. O escritor Guimarães Rosa já dizia que "Felicidade se acha é em horinhas de descuido". E quem não quer se sentir bem? Mas a vida dá trabalho. Relacionamento bom dá trabalho”, justifica ela.
APRENDA A RIR DE SI MESMO
Conduzir tudo com leveza, sem a gravidade com que costumamos impregnar a maioria das situações, é importante para quem busca viver em harmonia. “Lembro seguidamente de uma passagem do livro Meditações, do imperador e filósofo Marco Aurélio: “Que importância terá daqui a cinco anos o que hoje te deixa tão triste?” Relativizar pode ser uma opção inteligente, deixando de lado o drama e a excessiva importância que atribuímos a nós mesmos, afirma o professor das letras. Manter o bom humor também é um excelente lenitivo diante das adversidades. “Mais do que um subterfúgio, é uma concepção existencial, o melhor caminho para nos mantermos lúcidos diante de tantos anestesiamentos”, complementa.
Stuart Brown, pioneiro nos estudos sobre o brincar, explorou a importância dos estados mentais e comportamentais da diversão e humor para a lapidação de um cérebro saudável e inteligente. No Brasil, a psicóloga Fernanda Furia utiliza o termo playfulness para descrever o “estado mental positivo que permeia as experiências, o cotidiano e a visão de vida de uma pessoa”, conta Lívia. Manter o playfulness ativo significa aumentar a capacidade de aprendizado a partir de emoções positivas, diz ela. “Não é necessariamente uma atividade específica ou o ato de brincar em si, mas uma mentalidade e postura interna aberta ao bom humor”, acrescenta.
SAIA DO VIRTUAL PARA O REAL
O cérebro é uma máquina de adaptação e as emoções positivas contribuem para manter o corpo em um estado mais relaxado e disposto a explorar o ambiente com curiosidade, além de facilitar a construção de confiança nos relacionamentos interpessoais e a autoestima. Por outro lado, manter-se empolgado o tempo todo acaba mascarando emoções importantes, destaca a neurocientista. “As pessoas mais estáveis emocionalmente e mais satisfeitas com a própria vida observam suas emoções e não as escondem ou tentam disfarçá-las. Se estão com raiva, a sentem, refletindo sobre o que a causou, expressam esse sentimento e em seguida escolhem como vão se comportar a partir dali”, esclarece ela.
Já no mundo virtual há a necessidade de criar uma persona para o agrado e a aceitação. No dia a dia, tão impregnado de afazeres e obrigações como descreve Marcílio, é difícil abrir espaço para os sentimentos. Mas é muito bom estar abrigado quando tudo parece se inclinar para a separação, o distanciamento, comenta Marcílio.
SAIBA DIZER NÃO QUANDO NECESSÁRIO
Ter clareza de quais são suas prioridades é o primeiro passo para aprender a dizer “não”. Lívia orienta a começar definindo quais objetivos quer atingir ao longo do ano, entender os passos que precisará seguir e organizar o tempo para que pelo menos 60% da agenda esteja dedicada a esses passos. “A partir daí, diga não para tudo que não for essencial”, defende a profissional.
Ninguém gosta de decepcionar o outro, mas é importante gastar as horas sem que isso aconteça em inúmeras instâncias, admite Marcílio. “A frustração é altamente educativa. É relevante posicionar-se com autenticidade para não correr o risco de nos tornarmos autômatos diante das demandas complexas.”
PERDOE-SE PARA REDUZIR O PESO
Perdoar ajuda a diminuir o cortisol e aumenta a produção de serotonina e esse é, por si só, um grande motivo para dar um passo nesta direção. Perdoar não é sentimento, diz Lívia, é uma decisão diária de não carregar uma pessoa, situação ou sentimento com você, porque o peso disso está sobre quem não perdoa. “Não é algo fácil, mas é urgente porque a vida, como canta Lenine, é rara.” Danielle concorda. Para ela, perdão tem a ver com leveza e espaço interno. “O caminho é novamente o de olhar, sentir, talvez restaurar, talvez não. Podemos escolher desconectar de pessoas e coisas, não levar adiante rancores ou raivas, isso é autocuidado”, destaca.
Gilmar acredita que perdoar a si e aos demais é uma postura de sabedoria, já que todos somos falhos e o que varia é o grau de consciência. É preciso aceitar os equívocos uns dos outros, olhando com mais benevolência para os deslizes alheios e reconhecer a própria fisionomia, nossos medos e virtudes. “Eis aqui um caminho que nos conduz à felicidade”, preconiza o filósofo.
O CAMINHO A PERCORRER
“Acredito que, depois do autoconhecimento, ter foco pode produzir grandes coisas em prol do nosso bem-estar quando priorizado como caminho para esse fim. Focar significa visualizar uma conquista futura, definir quais passos devem ser cumpridos para alcançar o objetivo e internalizar a intenção de realizá-los”, ensina a especialista em neurociência. É preciso ter clareza e determinação e celebrar cada etapa.
O escritor francês Jacques Prévert tem uma frase que diz: “Reconheço a felicidade pelo barulho que ela faz ao ir embora.” Infelizmente, é quase sempre em retrocesso que nos damos conta desse bem tão precioso, reflete Marcílio. Os caminhos são múltiplos e escapam de qualquer fórmula. Pertencem à ordem do individual.
TREINE SEU CÉREBRO
Dicas para ajudar o cérebro a “gostar do que é certo e desgostar do que é errado”, by Livia Ciacci, neurocientista do Método Supera.
Matéria Especial Afrodite 75